segunda-feira, 10 de setembro de 2012

POESIA E MISTICISMO

Mais uma vez, vou bater na mesma tecla, a poesia é uma coisa mística, um verdadeiro poeta é um místico. E o que é um místico? Nesse caso, prefiro citar alguns místicos conhecidos de vocês do que definir um místico, porque as palavras não definem, as palavras são limitadas pois são símbolos. Então, segue alguns místicos: Raul Seixas (Não, Paulo Coelho não é um místico), Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, Rabindranath Tagore, Gibran Khalil, Omar Khayyam, Rumi (Mawlānā Jalāl-ad-Dīn Muhammad Rūmī), Florbela Espanca, Clarice Lispector, Manuel Bandeira, etc...

Se vocês quiserem entender de poesia terão que se tornarem um pouco místico, o que significa abandonar por uns minutos essa mente lógica, coerente, racional, científica, interpretativa e questionadora.

Vou deixar com vocês também dois textos que falam de poesias, dois textos que gosto muito, um do Osho e outro da poetisa Adélia Prado (numa conferencia na PUC-Rio em 1997) 


(Paulo Cesar de Oliveira)

A poesia precisa ser entendida de maneira diferente — você precisa amar a poesia, e não interpretá-la.

Você precisa repeti-la muitas vezes, de tal modo que ela se misture com o seu sangue, com os seus ossos, com a sua própria medula.

Você precisa recitar poesia muitas vezes, de tal modo que possa sentir todas as nuanças, as suas formas sutis.


Você precisa sentar-se simplesmente e deixar a poesia entrar em você, para que ela passe a ser uma força viva. Você a digere e depois se esquece dela; ela entra cada vez mais fundo e o transforma.

Deixe que eu seja lembrado como um poeta. É claro — não estou escrevendo poesias em palavras. Estou escrevendo num veículo mais vivo — em você. E é isso que toda a existência está fazendo.

Osho, em "A Harmonia Oculta: Discursos Sobre os Fragmentos de Heráclito"

MÍSTICA E POESIA
Adélia Prado


Não é uma conferência, porque eu não estaria nem habilitada para isto. Eu perguntei se poderia ser uma conversa sobre poesia e a direção da casa assentiu. É isso que nós vamos fazer!


Estes dias, me preparando um pouco para vir aqui, eu estava lendo um livro que se chama "Necessidade da Arte", de Ernst Fisher. Ele começa assim: "A arte é indispensável.


Se nós ao menos soubéssemos para que..." Isto toca na questão central da arte em geral, que é sua mais extrema inutilidade, a sua não-função.


A arte não tem função, sua natureza não se presta a nenhum uso, a nenhuma instrumentalização. Serve para aquilo que é individual, pequeno, limitado e precário encontre através dela uma significação de natureza universal e, portanto, de transcendência. Qualquer arte - pintura, música, cinema, literatura - onde eu consiga falar da minha pequena dor pessoal, do meu pequeno medo, do meu pavor, do meu pânico, da minha doença, da minha paixão; onde eu encontre uma linguagem para isto, um signo, me descansa... E eu falo: "Ah, tá bom..." Quando você vê um poeta falar da sua dor, você
fala: "Ai, que bom; ele também sabe como é!"


Quando você encontra isto no cinema, na música, você fica consolado, porque a sua pequena dor foi elevada a um patamar de universalidade, porque o artista ofereceu para você um espelho: "Olha, não se assuste, você é humano, isto compete a nós humanos."


Este é o papel da arte: oferecer para mim, que sou pequeno, um signo, um sinal de natureza universal, e que "segura" para mim aquela pequena emoção.


Existe um exemplo muito corriqueiro, mas muito fácil. Você tem um objeto de estimação que seu pai deixou para você. Um relógio que pertenceu ao seu pai, que está carregado de afeto e de história. Você morre de medo de perder este objeto, mas se você faz um lindo poema sobre este objeto, ou se você pinta este relógio, você pode perdê-lo, o ladrão pode roubá-lo, porque ele está eternizado, e de maneira muito mais perfeita no poema ou no quadro, não é verdade?

Este é o papel da arte, é "segurar" para mim a minha experiência humana. Não a minha pequena dor apenas, mas a dor universal.


A empregada doméstica sem nenhuma escolarização, sem nenhuma tese de mestrado, sem nenhuma informação acadêmica, arruma a casa e põe uma jarra de flor em um canto, e não em outro. Ela o faz orientada por um instinto estético de beleza, por um chamamento de beleza. E é isso que me distingue do animal. Eu não apenas como, mas eu como sobre uma toalha, sobre um prato; eu ponho uma vela; eu ponho uma flor. Essas são necessidades de natureza espiritual.


Não é brincadeirinha, não é uma "frescurinha", são necessidades profundas do espírito. Eu preciso colocar esta flor aqui; o meu vestido tem que ser "assado"; o meu jardim é "assim"...


Conheci um homem muito simples, ferreiro e a escolaridade dele era só até o 3° ano primário. Mas ele plantava jardim em sua casa. Quando ele fazia jardim, ele falava assim: "Eu não gosto de canteiro quadrado, é muito sem poesia. Eu gosto de um 'fingimento' de lua, de um 'fingimento' de estrela". 

Olha que coisa fantástica! Um "fingimento".

E aquilo, que era "fingimento" para ele, era o mais profundo de sua alma, era a expressão da beleza, da busca da necessidade da beleza. 


A arte tem este papel na sua natureza - de salvação coletiva da humanidade. Ela é uma via de salvação, porque ela toca naquilo que em mim é mais precioso, que não tem preço.

Não tem preço o meu desejo de beleza. Para o desejo do meu coração o mar é uma gota. Quem é que dá conta de exprimir o seu desejo? Não tem ninguém. Ele é infinito e a arte é uma forma, um referencial que fala: "Olha, 'segurei' para você".


Van Gogh pinta os girassóis dele e fala: "Ai, graças a Deus. Agora eu posso descansar.


Não quero nem mais saber de girassol. Ele já está aqui". É porque ele pega exatamente a qualidade imortal da experiência, que é a idéia a que nós estamos chegando - a qualidade epifânica da poesia.


A poesia, a poesia verdadeira é sempre "epifânica"; ela revela e a beleza dela é isto.


A beleza não é o assunto. Eu posso falar pessimamente sobre pores-de-sol e madrugadas e fazer um texto insuportável. Em arte, a beleza não é do tema, é da forma. E se a beleza está na forma qualquer assunto me serve, qualquer coisa é a casa da poesia. Ela não recusa absolutamente nada que diz respeito à experiência humana, porque ela guarda, na sua forma, exatamente esta revelação - é só "olhos de ver". 


Por isso é que a Bíblia, e todas as escrituras sagradas de todas as religiões, sobrevivem há milênios, há séculos e séculos, por causa da linguagem. É por causa da linguagem. Os teólogos falariam aqui: "É por causa de Deus". É, mas eu estou falando a mesma coisa. É uma linguagem divina. A linguagem da arte é divina. Isto não é uma força de expressão. 

Eu acho que isto pode ser traduzido de forma literal, porque o poeta, o artista, rigorosamente falando, não é o criador de sua obra, isto é impossível. Uma coisa do tamanhinho que nós somos é incapaz de produzir tal comoção, como as obras de arte nos produzem. 

O livro é maior que o poeta. Tem que ser, do contrário não se justifica a sua publicação. O livro tem que ser melhor; a pintura tem que ser melhor que o pintor; porque não é uma linguagem dele, mas que passa através do artista, com todos os seus dados biográficos, as "neuras" e as "psis". Mas a obra em si dá esse salto, ela transcende.

Não é uma coisa sempre muito agradável conhecer os autores, não é uma coisa sempre muito boa e, às vezes, é bastante decepcionante. A obra é melhor, tem que ser melhor. O dia em que o livro for pior que eu, eu não posso publicá-lo, não devo publicá-lo. Eu tenho que ir atrás do meu livro, o pintor tem que ir atrás da sua pintura, que está à frente, porque é linguagem
divina.


"Existem poemas que não tem poesia."


A pretensão do dramaturgo, de quem está fazendo teatro, é tocar, num determinado momento da peça, numa emoção de natureza poética que levante a platéia. O cinema é a mesma coisa, a pintura é a mesma coisa e o poema também. Existem poemas que não têm poesia. A poesia é a estranheza que a coisa me provoca; uma estranheza fundada na beleza. Na hora em que fica bonito demais nós não agüentamos! Eu já vi gente sair do cinema na hora melhor. Às vezes é quase insuportável. Tem hora que o teatro fica tão horrível de bom que nós saímos: "Não quero ver, não quero".


A beleza revela o real.


Há pessoas que não suportam a beleza. Sabem por que? Porque ela revela o real, e nem sempre eu quero o real. Por exemplo, às vezes eu quero exatamente, com a arte, fugir da realidade. Então eu não estou fazendo arte, pode ter certeza absoluta. Por isto que os governos fortes, as ditaduras, têm pavor da arte verdadeira, porque ela revela, ela desnuda.


A arte tem esse papel, que é como "correr uma cortina".. Você vê! É o caráter "epifânico" da poesia. Se ela não faz isto, não acontece nada; mas se ela é verdadeira, acontece.


Esse momento de beleza é o momento profundo, de profunda religiosidade.
Você cai em adoração. Porque você está vendo algo inominável.


Vocês já repararam num abacaxi? Todo mundo conhece um abacaxi. Que coisa difícil de conhecer um abacaxi. Aquela coisa cascuda diante de você. Ele é impenetrável!


O abacaxi ou qualquer outro fenômeno, como uma árvore... Mas se um artista pinta este abacaxi, faz pintura real ou faz um poema, você fala: "Gente mas que coisa!". Então você vai lá na sua cozinha conferir o abacaxi que está lá. É verdade, porque há um acontecimento revelador. A poesia me faz perceber a pulsação das coisas. Isso que é poesia, e a isso chamo também de experiência religiosa.


Se nós ficarmos atentos à linguagem dos místicos, perceberemos que eles só falam por metáforas. Por que? Eles estão falando do inominável: "Oh! Eu vi, eu vi, eu vi... O amor é o amor, o amor quer ser amado." Se vamos ao anedotário da vida dos santos, achamos muito engraçado. Se você for até os místicos, os mais antigos então... 


Mestre Eckhart, por exemplo, tem um livro que fala assim: "Deus existe gente, mas Ele existe tanto que nem existe!". É uma coisa tão difícil de falar e ele tem que recorrer à linguagem poética. A linguagem filosófica é pequena, a linguagem científica fica é menor. Só a hipérbole poética, só a loucura da poesia e da arte é que revela isto para nós. 

Dizem que o Papa ficava preocupadíssimo, passava reprimendas nele: "Você não pode fazer isto, porque você está descatequizando o povo". Ele falava: "Não, Sua Santidade, o povo entende". E entende mesmo. Qualquer dona Maria entende isto. Você fala: "Deus existe tanto que Ele nem existe, de tanto que Ele existe!". É tranqüilo, isso é tranqüilo para uma alma simples e desarmada.

A poesia exige a mais profunda humildade.


Entramos em mais um outro ponto. A poesia exige a mais profunda humildade.


Um espírito orgulhoso e cercado de lógica e de conceitos e de preconceitos não tem entrada para a poesia. A poesia é dos loucos e dos simples e dos santos. É preciso de um tipo de atitude de reverência, é aquele "curvai-vos", quer dizer, é mistério. Eu estou celebrando o mistério! É aí que reside a grande crise da liturgia hoje. Por que que a liturgia está em crise? Chega a Campanha da Fraternidade, e você encontra algumas músicas que falam até no sistema. 


Você está na hora da comunhão, aquela hora maravilhosa, e está cantando coisas - sobre o sistema, o capitalismo, etc. Não é lugar para este discurso
politizado. O lugar da adoração, exige um rito de adoração.


" A liturgia tem que ser vela..."


São as pessoas na roça, na minha roça, cantando "tantum ergo sacramentum" em latim macarrônico, errado, mas em estado de reverência e adoração, não por causa do latim, mas por causa da beleza da música. A liturgia tem que ser bela, ela tem que ter esta natureza poética. Se não possibilitar esta experiência, nós não estaremos celebrando o mistério. Então o ministro fica no altar, como se fosse um funcionário do sagrado, assim como tem funcionário da poesia. 


Tem muita gente que é funcionário da poesia:

"Ah, você está precisando de um versinho de aniversário! Eu faço soneto para você, eu faço quadrinha, eu faço o que quiser." Não é isto, não se trata disto. A poesia não é para talentosos não. A poesia exige uma burrice, uma disponibilidade, uma generosidade, para permitir aquela palavra horrível naquele poema. Você tem que colocá-la. Não dá para mandar naquilo, não é um armazém de secos e molhados. 


E é nisto que eu acho que a mística, a poesia, a liturgia, fazem uma unidade só. A fonte da poesia e da celebração litúrgica é uma só. A poesia celebra o mistério do ser. E o que a liturgia celebra?

Celebra e adora o mistério do Ser por excelência. Não sei o que podemos falar teologicamente aqui. Mas estamos diante do mesmo mistério, então, é só celebração. Na hora do catecismo eu posso falar bem, explicar direitinho. Mas na hora da celebração é celebração, é beleza, é adoração. E o culto que não permitir o mistério, que quiser explicar o mistério, picar o mistério em pedacinhos para a assembléia, ele está, exatamente, tentando domesticar Deus. Domesticar o indomesticável. A celebração é esta atitude de reverência diante do mistério!


"A função da poesia é ser bela..."


Se vamos ao teatro para ver uma coisa triste demais, por exemplo, uma tragédia... Não precisa ir em Shakespeare, nem nos gregos, pode ir no Nelson Rodrigues, que é o nosso Shakespeare. Você vai ao cinema, vê aqueles filmes tristes, sai de lá com a garganta doendo, porque fez força para não chorar. No entanto, você vai. Aquilo é atraente.


Então, a função da poesia é ser bela. E, em sendo bela, ela me dá a melhor ajuda possível.


Ela fala comigo assim:


"Fica tranqüila... Pode esperar que vai dar certo. Estão lá Mozart, Bach, Van Gogh...Está tudo lá. Eles entendem tudo que você está sofrendo aí. Pode ficar sossegada".


É São Francisco falando por mim, é Santo Inácio.


Por falar nisso eu vi uma coisa interessantíssima num jornalzinho. Dizia que
quando Jesus nasceu, quando souberam da notícia, foram visitá-lo um dominicano, um jesuíta e um franciscano. Dizem que o franciscano chegou, e quando viu a gruta da natividade, prostrou-se em adoração. Quando veio o dominicano, ele fez uma tese, uma tese maravilhosa sobre o mistério da encarnação do Verbo. Depois chegou o jesuíta e perguntou a São José: "Em qual o colégio você vai colocar o menino?".


Perfeita, não é? Anedota tem um dom de fazer uma caricatura para extrairmos o que de fato interessa para a nossa discussão. É só isso que eu quero dizer: a poesia é a celebração do mistério e a liturgia também.


Agora eu vou ler alguns pequenos textos que selecionei. Eu acho que para falar sobre poesia, o melhor é falar a própria, não é?


Com licença poética


Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio no parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.