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TABACARIA, MULHERES E POESIAS
Abaixo, um ótima análise do meu poema preferido feita por Fabiano F. Garcez.
Em verdade vos digo que fica muito difícil para uma pessoa entender um poema, se essa pessoa não sabe o que significa metáfora, "Eu poético" e licença poética.
Na
verdade, novamente vos digo, que a poesia precisa ser entendida de
maneira diferente — você precisa amar a poesia, e não interpretá-la.
Um poema, uma poesia, é como uma mulher, se você tentar entendê-las você se perde, fica confuso e pode até se matar. Agora, se você apenas a ama e nada mais espera desse amor... Você a ama e depois se esquece dela; ela entra cada vez mais fundo e o transforma.- (Paulo Cesar)
Tabacaria (Poema), de Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa)
Datado de 1928, o poema Tabacaria enquadra-se na terceira fase poética
de Álvaro de Campos, a fase, "intimista", onde mergulha nas
profundezas da angústia e do pessimismo. O autor retorna ao tema do cansaço,
da inquietação diante do incompreensível. Tabacaria
é o melhor exemplo deste último período criativo de Campos.
Talvez, seja a poesia mais significativa desse heterônimo, pois nela
podemos encontrar muitas das características presentes em sua obra.
No poema é predominante o niilismo, o sentimento de revolta, o inconformismo,
a desumanização, também, um deprimente vazio e a desilusão
própria dos tempos pós-guerra e certo desleixo do português,
como o próprio Pessoa afirmou em apontamentos.
O texto é um poema moderno, caracterizado assim pelos versos livres,
versos que Ricardo Reis, outro heterônimo de Pessoa, em um apontamento
no livro `O Eu profundo e outros eus` faz as seguintes considerações:
"O que verdadeiramente Campos faz, quando escreve em verso, é
escrever prosa ritmada cm pausas maiores marcadas em certos pontos, para fins
rítmicos, e esses pontos determina-os ele pelos fins dos versos. Campos
é um grande prosador, com uma grande ciência é o ritmo da
prosa, e a prosa de que se serve é aquela em que se introduziu, além
dos vulgares sinais de pontuação, um pausa maior e especial, que
Campos, como os seus pares anteriores e semelhantes, determinou representar
graficamente pela linha quebrada no fim, pela linha disposta como o que se chama
um verso."
Nos primeiros versos (Não sou nada/ Nunca serei nada./ Não
posso querer ser nada), já se percebe a descrença presente
em relação a si mesmo e ao longo do poema em relação
a tudo. O Eu-poético sabe que só o que possui são sonhos.
( ...tenho em mim todos os sonhos do mundo.).
Sozinho no quarto o Eu-poético contempla a rua, motra-se uma oposição
entre dentro (o quarto), subjetivo, a sua reflexão, e a rua (fora) a
realidade objetiva, e percebe que lá há um mistério que
ninguém vê (Dais para o mistério de uma rua cruzada
constantemente por gente,/ Para uma rua inacessível a todos os pensamentos)
apenas ele percebe, pois possui uma capacidade imaginativa muito grande (Com
o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres) faz referência
a morte como um desses mistérios citados no verso: Com a morte a
pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens. Outra atítese
que se repete ao longo do poema é o tudo/nada (Com o Destino a conduzir
a carroça de tudo pela estrada de nada).
O Eu-poético está refletindo e isso o deprime (Estou hoje
vencido, como se soubesse a verdade) e a falta do sonho, a lucidez, também
o deixa deprimido e negativo (Estou hoje lúcido, como se estivesse
para morrer).
A perplexidade de quem pensa, reflete, chega a conclusões, mas não
as coloca em prática (Estou hoje perplexo como quem pensou e achou
e esqueceu), assim se vê divido, a oposição entre a
subjetividade (dentro) e a realidade (fora) na estrofe seguinte retorna ao texto
(À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,/ E à
sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.)
Tudo que aprendeu ele procura esquecer, pois não lhe foram úteis
(Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada./ A
aprendizagem que me deram), e recorre a natureza em busca de um sentido
— talvez influenciado por Alberto Caeiro, seu mestre —, (Desci
dela pela janela das traseiras da casa,/ Fui até o campo com grandes
propósitos), mas essa busca é em vão, também
no campo não vê sentido, para ele essa `vida natural´ é
inútil, pois o Eu-poético é um homem da cidade, lúcido,
angustiado e não inocente (Mas lá encontrei só ervas
e árvores,/ E quando havia gente era igual à outra), então
o Eu-poético volta a reflexão (Saio da janela, sento-me numa
cadeira. Em que hei-de pensar?)
No verso seguinte o Eu-poético pensando sobre si retorna a oposição
do sonho (desejo) e realidade reflexiva (Que sei eu de que serei, eu que
não sei o que sou?/ Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa),
o Eu-poético opõe a capacidade de sonhar a limitação
do mundo real (E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não
pode haver tantos!/(...) Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios
como eu,/ E a história não marcará, quem sabe?, nem um,)
o niilismo, a negatividade, volta, agora em relação ao futuro
(Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.)
novamente a antítese sonho/realidade aparece no poema, onde ele se compara
a doidos, sonhadores, malucos, que tem conclusões a cerca de muitas coisas
(Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!/
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?).
Depois o Eu-poético percebe que os sonhos nada valem (Quantas aspirações
altas e nobres e lúcidas/ Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas,
E quem sabe se realizáveis,) pois são limitados pelo mundo
externo e real (Nunca verão a luz do sol real nem acharão
ouvidos de gente?), pois o mundo não é para aqueles que apenas
sonham, mas para aqueles que lutam (O mundo é para quem nasce para
o conquistar/ E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda
que tenha razão), assim apesar de ter conquistado mais que Napoleão,
amado mais que Cristo e filosofado mais que Kant, nada lhe adiantou pois tudo
foi feito na imaginação (sonho) e não na realidade (Tenho
sonhado mais que o que Napoleão fez./ Tenho apertado ao peito hipotético
mais humanidades do que Cristo,/ Tenho feito filosofias em segredo que nenhum
Kant escreveu.), este verso marca novamente a impotência perante
a realidade (Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,/ Ainda que não
more nela). Os versos seguintes estão no pretérito marcando
novamente o niilismo o Eu-poético que esperou sem sucesso e nada conseguiu,
agora já não pode crer nele nem em nada (Serei sempre o que
não nasceu para isso;/ Serei sempre só o que tinha qualidades;/
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede
sem porta/ E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, / E ouviu a voz de
Deus num poço tapado. / Crer em mim? Não, nem em nada.) com
isso a realidade objetiva pesa sobre seu ser inflamado de sonho (Derrame-me
a Natureza sobre a cabeça ardente/ o seu sol a sua chuva, o vento que
me acha o cabelo) o Eu-poético se vê desiludido (E o resto
que venha, ou tiver que vir, ou não venha.), os versos seguintes
são marcados pela incapacidade do Eu-poético perante o mundo real
e externo que o torna marginalizado nesse mundo sem emoções e
opaco: (Escravos cardíacos das estrelas,/ Conquistámos todo
o mundo antes de nos levantar da cama; / Mas acordámos e ele é
opaco, / Levantámo-nos e ele é alheio,/ Saímos de casa
e ele é a terra inteira,/ Mais o sistema solar e a Via Láctea
e o Indefinido.)
A passagem mais bela do poema, talvez, é quando o Eu-poético
inveja a inocência de uma criança que come chocolates, pois ele
pensa, reflete muito e isso lhe é doloroso, é angustiante e traz
infelicidade (Come chocolates, pequena; /Come chocolates!/ Olha que não
há mais metafísica no mundo senão chocolates). Mas
essa inveja que lhe causou um desejo de trocar de lugar com a menina logo dessipa-se,
pois ao se colocar no lugar da criança, apenas com o ato de tirar a lâmina
de papel de prata a realidade lhe vem a tona e percebe que o papel não
é de prata, mas de estanho, acabando com o sonho de ser feliz e inocente
como a menina, ou seja, jogando tudo fora o papel e os sonhos (Pudesse eu
comer chocolates com a mesma verdade com que comes!/ Mas eu penso e, ao tirar
o papel de prata, que é de folhas de estanho,/ Deito tudo para o chão,
como tenho deitado a vida.)
Nos versos seguintes o Eu-poético exibe novamente sua apatia, seu vazio
interior, a negatividade e o niilismo em relação a si e ao futuro,
pois o sonho foi vencido pela realidade (Mas ao menos fica da amargura do
que nunca serei/ A caligrafia rápida destes versos,/ Pórtico partido
para o Impossível./ Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem
lágrimas,/ Nobre ao menos no gesto largo com que atiro/ A roupa suja
que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,) com isso ele recorre a figuras
femininas inexistentes, pois o sonho alivia seu sofrimento (Tu, que consolas,
que não existes e por isso consolas,/ Ou deusa grega, concebida como
estátua que fosse viva,/ Ou patrícia romana, impossivelmente nobre
e nefasta,/ Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,/ Ou marquesa
do século dezoito, decotada e longínqua,/ Ou cocote célebre
do tempo dos nossos pais,) procura também algo na modernidade, sem
saber o que procura, que lhe ajude na inspiração (Ou não
sei quê moderno – não concebo bem o quê-,/ Tudo isso,
seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!), mas tudo é
em vão, pois o vazio interno e a falta de esperança continua (Como
os que invocam espíritos invocam espíritos invoco/ A mim mesmo
e não encontro nada,).
O Eu-poético volta a observação do real (Chego à
janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta./ Vejo as lojas, vejo os passeios,
vejo os carros que passam,) nesse momento o Eu-poético se desumaniza,
se difere das pessoas (Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,) a realidade
impenetrável lhe deixa alheio, marginal ao mundo, novamente, (E tudo
isso me pesa como uma condenação ao degredo,/ E tudo isto é
estrangeiro, como tudo.)
A desilusão e o desejo de troca de lugar com outra pessoa voltam ao
texto (Vivi, estudei, amei, e até cri,/ E hoje não há
mendigo que eu não inveje só por não ser eu.) voltam
também a antítese de tudo/nada e a identificação
que no mundo não se deve sonhar apenas (Porque é possível
fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso).
O Eu-poético constata sua falha, nos versos seguintes, (Fiz de
mim o que não soube,/E o podia de mim não o fiz./ O dominó
que vesti era errado) e a perda da identidade pois ela não era real,
era imaginada (Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti,
e perdi-me./Quando quis tirar a máscara/ Estava pegada à cara),
vivendo sob uma personalidade irreal, ele perdeu tempo (Quando a tirei e
me vi ao espelho,/ Já tinha envelhecido.) sem personalidade não
pode fazer parte do mundo, neste momento a palavra ´máscara´,
até então, usada como metáfora para personalidade, agora
passa a contextualizar a metáfora do mundo como um teatro, sem fazer
parte do mundo ele não pode subir ao palco, devendo ficar a margem (Deitei
fora a máscara e dormi no vestiário).
Mas o Eu-poético após constatar suas falhas, percebe-se sem
personalidade, vê uma hipótese de redenção na escrita,
ele encontra utilidade em toda sua reflexão, assim com a escrita ele
pode provar, a si mesmo, que é um ser elevado (E vou escrever esta
história para provar que sou sublime.), mas ao olhar a Tabacaria,
representação da realidade, essa euforia logo passa, voltando
o niilismo, a apatia, a desilusão e o sentimento de exclusão (Quem
me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,/ E não ficasse sempre
defronte da Tabacaria de defronte,/ Calcando ao pés a consciência
de estar existindo,/ Como um tapete em que um bêbado tropeça/ Ou
um capacho que os ciganos roubaram e não vale nada,).
Ao olhar o dono da Tabacaria que representa o homem comum sente-se desconfortávelm
(Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta./
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada/ E com o desconforto
da alma mal-entendendo.) depois gradativamente volta o sentimento de inutilidade
da Tabacaria, de seus versos, do mundo e de tudo, é significativa o modo
que aparece essa gradação, é como se a inutilidade das
vidas do Eu-poético e do dono da tabacaria atingisse a rua, o país,
o planeta até atingir todo o universo (Ele morrerá e eu morrerei./
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos./ A certa altura morrerá
a tabuleta também, e os versos também./ Depois de certa altura
morrerá a rua onde esteve a tabuleta,/ E a língua em que foram
escritos os versos./ Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto
se deu./ Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente/
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como
tabuletas,/ Sempre uma coisa defronte da outra,/ Sempre uma coisa tão
inútil como a outra,).
O anticlímax dá-se nos versos seguintes com a visão de
um homem que entra na Tabacaria, provavelmente um cliente, a realidade volta
ao Eu-poético (Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?/
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.), depois
o Eu-poético é tomado por uma euforia e vai tentar escrever (Semiergo-me
enérgico, convencido, humano,/ E vou tencionar escrever estes versos
em que digo o contrário.), após essa euforia passageira o
Eu-poético se refugia na evasão, sem pensar, sem refletir, para
apenas saborear o cigarro (Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los/
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos./(...)
E continuo fumando./ Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.)
Com o fim do momento evasivo e de solidão o Eu-poético volta
a refletir, mas agora emotivamente, cogitando a felicidade na vida simples (Se
eu casasse com a filha da minha lavadeira/ Talvez fosse feliz.) O cliente
sai da tabacaria o Eu-poético o reconhece, é um homem comum, sem
muitas inquietações e reflexões (O homem saiu da tabacaria
(..)/ Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.)
o poema chega ao fim quando o Eu-poético interage, se comunica, com o
homem — chamado Esteves —, nome interessante e que combina com o
sentimento de todo o poema, pois se trata do verbo estar no pretérito
acompanhado do sintagma ‘sem metafísica’, trazendo uma ambiguidade
simbólica a esse homem comum: esteves sem metafísca, fazendo assim
a aproximação do subjetivo (Eu-poético) e objetivo (homem
e o dono da Tabacaria).
Nos últimos versos (Como por um instinto divino o Esteves voltou-se
e viu-me./ Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo/
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.)
o Eu-póetico volta-se desiludido e sem esperança para a realidade,
enquanto o dono da Tabacaria alheio a tudo apenas sorri.
Os quatro primeiros versos constituem uma introdução a este poema,
sendo esta independente do primeiro e dos restantes quatro momentos. Assim,
nestes quatro versos, o "eu" confessa o seu fracasso como algo irremediável,
Não posso querer ser nada. Será esta, aliás, a
temática orientadora deste poema em que o sujeito poético reconhece
que, por querer ser tudo como possibilidade, nunca será nada.
Os quatro momentos do poema estão relacionados com os espaços
físicos onde se desloca o sujeito poético e que se caracterizam
como:
DENTRO: quarto (cadeira) / FORA (janelas)
No primeiro momento, versos 5 a 31, o "eu" reflete sobre o excesso
de realidade do mundo exterior Do meu quarto de um dos milhões do
mundo que ninguém sabe quem é; uma rua cruzada constantemente
por gente, e a irrealidade de tudo, uma rua inacessível; impossivelmente
real, certa, desconhecidamente certa; Com o mistério das coisas.
Neste primeiro momento, o "eu" encontra-se à janela do seu
quarto mantendo, deste modo, o contacto visual com o exterior, rua e Tabacaria.
O pessimismo, como já citado, é nota dominante neste texto como,
por exemplo, em Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos
nos homens. Esta ideia de pessimismo encontra-se ligada, por sua vez, ao
desgaste do Tempo e à morte que se tem como certa. (ver versos 12 e 13
com referência ao Destino, ligado à ideia de Morte, como um tirano
que tudo determina).
A negatividade do "eu" é assumida através da anáfora
presente no início dos versos Estou hoje vencido; Estou hoje lúcido;
Estou hoje perplexo; Estou hoje dividido.
Depois destas constatações, o resumo desta sequência presente
no verso, Falhei em tudo.
Poema na íntegra:
1. Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim
todos os sonhos do mundo.
5. Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões
do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o
que saberiam?),
Dais para o mistério de uma
rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a
todos os pensamentos,
10. Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas
por baixo das pedras e dos seres
Com a morte a pôr umidade nas
paredes e cabelos brancos nos homens.
Com o Destino a conduzir a carroça
de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse
a verdade.
15. Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade
com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se
esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio,
e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
20. E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem
pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade
que devo
À Tabacaria do outro lado
da rua, como coisa real por fora,
E à sensação
de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
25. Falhei em tudo.
Como não fiz propósito
nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras
da casa.
Fui até ao campo com grandes
propósitos.
30. Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à
outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira.
Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu
que não sei o que sou?
35. Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser
a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem
em sonho gênios como eu ,
E a história não
marcará, quem sabe?, nem um,
40. Nem haverá senão estrume de tantas conquistas
futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há
doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma
certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
45. Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo.
Não estão nesta hora
gênios-para-si-mesmos sonhando.
Quantas aspirações
altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres
e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
50. Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos
de gente?
0 mundo é para quem nasce
para o conquistar
E não para quem sonha que
pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão
fez.
Tenho apertado ao peito hipotético
mais humanidades do que Cristo,
55. Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o
da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu
para isso;
Serei sempre só o que tinha
qualidades;
60. Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé
de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa
capoeira,
E ouviu a voz de Deus num paço
tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça
ardente
65. 0 seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver
que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de
nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
70. Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é
a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea
e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais
metafísica no mundo senão chocolates.
75. Olha que as religiões todas não ensinam mais que a
confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a
mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel
de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como
tenho deitado a vida.)
80. Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes
versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo
um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com
que atiro
85. A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu, que consolas, que não
existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua
que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente
nobre e nefasta,
90. Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito,
decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo
dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno
- não concebo bem o quê -,
Tudo isso, seja o que for, que sejas,
se pode inspirar que inspire!
95. Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos
invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro
nada.
Chego à janela e vejo a rua
com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios,
vejo os carros que passam,
100. Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também
existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação
ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro,
como tudo.)
Vivi, estudei, amei, e até
cri,
105. E hoje não há mendigo que eu não inveje só
por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas
e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem
estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível
fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como
um lagarto a quem cortam o rabo
110. E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.
Fiz de mim o que não
soube,
E o que podia fazer de mim não
o fiz.
0 dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não
era e não desmenti, e perdi-me.
115. Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não
sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi
no vestiário
120. Como um cão tolerado pela gerência Por ser inofensivo
E vou escrever esta história
para provar que sou sublime.
Essência musical dos
meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa
que eu fizesse
E não ficasse sempre defronte
da Tabacaria de defronte,
125. Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado
tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram
e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou
à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça
mal voltada
130. E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu
deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta
também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá
a rua onde esteve a tabuleta,
135. E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante
em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros
sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas
como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra ,
140. Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo
tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa
ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria
(para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai
de repente em cima de mim.
145. Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos
em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar
em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação
de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
150. E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas
as especulações
E a consciência de que a metafísica
é uma conseqüência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás
na cadeira
E continuo fumando.
155. Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha
da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira.
Vou á janela.
0 homem saiu da Tabacaria (metendo
troco na algibeira das calças?).
160. Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(0 Dono da Tabacaria chegou á
porta.)
Como por um instinto divino o Esteves
voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus
ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem
esperança, e o dono da tabacaria sorriu.
Autor: Fabiano Fernandes Garcez|