Por SIGMUND FREUD
A questão do propósito da vida
humana já foi levantada várias vezes; nunca, porém, recebeu resposta
satisfatória e talvez não a admita. Alguns daqueles que a formularam
acrescentaram que, se fosse demonstrado que a vida não tem propósito, esta perderia todo valor para
eles. Tal ameaça, porém, não altera nada. Pelo
contrário, faz parecer que temos
o direito de descartar a questão, já que ela parece derivar da presunção humana, da
qual muitas outras manifestações já nos são familiares.
Ninguém fala sobre o
propósito da vida dos animais, a menos, talvez, que se imagine que ele resida no fato
de os animais se acharem a serviço do homem. Contudo, tampouco essa opinião é
sustentável, de uma vez que existem muitos animais de que o homem nada pode se
aproveitar, exceto descrevê-los, classificá-los e estudá-los; ainda assim, inumeráveis espécies
de animais escaparam inclusive a essa utilização, pois existiram e se
extinguiram antes que o homem voltasse seus olhos para elas.
Mais uma vez, só a religião
é capaz de resolver a questão do propósito da vida.
Dificilmente incorreremos em erro
ao concluirmos que a idéia de a vida possuir um propósito se forma e desmorona
com o sistema religioso.Voltar-nos-emos, portanto, para uma questão menos ambiciosa,
a que se refere àquilo que os próprios homens, por seu comportamento, mostram
ser o propósito e a intenção de suas vidas.
O que pedem eles da vida e o que
desejam nela realizar? A resposta mal pode provocar dúvidas. Esforçam-se para obter
felicidade; querem ser felizes e assim permanecer. Essa empresa apresenta dois
aspectos: uma meta positiva e uma meta negativa. Por um lado, visa a uma ausência de
sofrimento e de desprazer; por outro, à experiência de intensos sentimentos de
prazer. Em seu sentido mais restrito, a palavra ‘felicidade’ só se relaciona a esses últimos.
Em conformidade a essa dicotomia de objetivos, a atividade do homem se desenvolve
em duas direções, segundo busque realizar – de modo geral ou mesmo
exclusivamente – um ou outro desses objetivos.
Como vemos, o que decide o
propósito da vida é simplesmente o programa do princípio do prazer. Esse
princípio domina o funcionamento do aparelho psíquico desde o início. Não pode haver
dúvida sobre sua eficácia, ainda que o seu programa se
encontre em desacordo com o mundo
inteiro, tanto com o macrocosmo quanto com o microcosmo. Não há possibilidade
alguma de ele ser executado; todas as normas do universo são-lhe contrárias.
Ficamos inclinados a dizer que a intenção de que o
homem seja ‘feliz’ não se acha
incluída no plano da ‘Criação’. O que chamamos de felicidade no sentido mais
restrito provém da satisfação (de preferência, repentina) de necessidades represadas em alto
grau, sendo, por sua natureza, possível apenas como uma manifestação episódica.
Quando qualquer situação desejada pelo princípio do prazer se prolonga, ela produz
tão-somente um sentimento de contentamento muito tênue. Somos feitos de modo a só
podermos derivar prazer intenso de um contraste, e muito pouco de um determinado
estado de coisas.
Assim, nossas possibilidades de
felicidade sempre são restringidas por nossa própria constituição. Já a
infelicidade é muito menos difícil de experimentar. O sofrimento nos ameaça a partir de
três direções: de nosso próprio corpo, condenado à
decadência e à dissolução, e que
nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de
advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição
esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros
homens. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do
que qualquer outro. Tendemos a encará-lo como uma espécie de acréscimo gratuito,
embora ele não possa ser menos fatidicamente inevitável do que o sofrimento
oriundo de outras fontes.
Não admira que, sob a pressão de
todas essas possibilidades de sofrimento, os homens se tenham acostumado a
moderar suas reivindicações de felicidade – tal como, na verdade, o próprio princípio
do prazer, sob a influência do mundo externo, se transformou no mais modesto
princípio da realidade –, que um homem pense ser ele próprio feliz, simplesmente
porque escapou à infelicidade ou sobreviveu ao sofrimento, e que, em geral, a
tarefa de evitar o sofrimento coloque a de obter prazer em segundo plano.
A reflexão nos
mostra que é possível tentar a realização dessa
tarefa através de caminhos muito
diferentes e que todos esses caminhos foram recomendados pelas diversas
escolas de sabedoria secular e postos em prática pelos homens. Uma satisfação irrestrita
de todas as necessidades apresenta-se-nos como o método mais tentador de conduzir
nossas vidas; isso, porém, significa colocar o gozo antes da cautela, acarretando
logo o seu próprio castigo.
Os outros métodos, em que a fuga do desprazer constitui o
intuito primordial, diferenciam-se de acordo com a fonte de desprazer para a qual sua
atenção está principalmente voltada. Alguns desses métodos são extremados; outros,
moderados; alguns são unilaterais; outros atacam o problema, simultaneamente, em
diversos pontos.
Contra o sofrimento que pode advir dos relacionamentos humanos, a
defesa mais imediata é o isolamento voluntário, o manter-se à distância das outras
pessoas. A felicidade passível de ser conseguida através desse método é, como
vemos, a felicidade da quietude. Contra o temível mundo externo, só podemos
defender-nos por algum tipo de afastamento dele, se pretendermos solucionar a tarefa
por nós mesmos.
Há, é verdade, outro caminho, e melhor: o de tornar-se membro da
comunidade humana e, com o auxílio de uma técnica orientada pela ciência,
passar para o ataque à natureza e sujeitá-la à vontade
humana. Trabalha-se então com
todos para o bem de todos.
Contudo, os métodos mais interessantes de evitar o
sofrimento são os que procuram influenciar o nosso próprio organismo. Em última
análise, todo sofrimento nada mais é do que sensação; só existe na medida em que o
sentimos, e só o sentimos como conseqüência de certos modos pelos quais nosso organismo
está regulado.O mais grosseiro, embora também o mais eficaz, desses métodos de
influência é o químico: a intoxicação. Não creio que alguém compreenda inteiramente o
seu mecanismo; é fato, porém, que existem substâncias estranhas, as quais,
quando presentes no sangue ou nos tecidos, provocam em nós, diretamente, sensações
prazerosas, alterando, também, tanto as condições que dirigem nossa sensibilidade, que
nos tornamos incapazes de receber impulsos desagradáveis. Os dois efeitos
não só ocorrem de modo simultâneo, como parecem estar íntima e mutuamente
ligados.
No entanto, é possível que haja substâncias na química de nossos próprios corpos
que apresentem efeitos semelhante pois conhecemos pelo menos um estado
patológico, a mania, no qual uma condição semelhante à intoxicação surge sem
administração de qualquer droga intoxicante.
Além disso, nossa vida psíquica
normal apresenta oscilações entre uma liberação de prazer relativamente fácil e
outra comparativamente difícil, paralela à qual ocorre uma receptividade, diminuída ou
aumentada, ao desprazer. É extremamente lamentável que até agora esse
lado tóxico dos processos mentais tenha escapado ao exame científico. O serviço
prestado pelos veículos intoxicantes na luta pela felicidade e no afastamento da desgraça é
tão altamente apreciado como um benefício, que tanto indivíduos quanto povos lhes
concederam um lugar permanente na economia de sua libido. Devemos a tais veículos
não só a produção imediata de prazer, mas também um grau altamente desejado de
independência do mundo externo, pois sabe-se que, com o auxílio desse ‘amortecedor
de preocupações’, é possível, em qualquer ocasião, afastar-se da pressão da
realidade e encontrar refúgio num mundo próprio, com melhores condições de
sensibilidade.
Sabe-se igualmente que é exatamente essa propriedade dos intoxicantes que
determina o seu perigo e a sua capacidade de causar danos. São responsáveis, em
certas circunstâncias, pelo desperdício de uma grande quota de energia que poderia ser
empregada para o aperfeiçoamento do destino humano.
A complicada estrutura de nosso
aparelho mental admite, contudo, um grande número de outras influências.
Assim como a satisfação do instinto equivale para nós à felicidade, assim também um grave
sofrimento surge em nós, caso o mundo externo nos deixe definhar, caso se
recuse a satisfazer nossas necessidades.
Podemos, portanto, ter esperanças de nos libertarmos
de uma parte de nossos sofrimentos, agindo sobre os impulsos instintivos. Esse
tipo de defesa contra o sofrimento se aplica mais ao aparelho sensorial; ele procura
dominar as fontes internas de nossas necessidades. A forma extrema disso é ocasionada
pelo aniquilamento dos instintos, tal como prescrito pela sabedoria do mundo peculiar
ao Oriente e praticada pelo ioga. Caso obtenha
êxito, o indivíduo, é verdade,
abandona também todas as outras atividades: sacrifica a sua vida e, por outra via, mais
uma vez atinge apenas a felicidade da quietude.
Seguimos o mesmo caminho quando
os nossos objetivos são menos extremados e simplesmente tentamos controlar
nossa vida instintiva. Nesse caso, os elementos controladores são os agentes
psíquicos superiores, que se sujeitaram ao princípio da realidade. Aqui, a meta da
satisfação não é, de modo algum, abandonada, mas garante-se uma certa proteção
contra o sofrimento no sentido de que a não-satisfação não é tão penosamente sentida no
caso dos instintos mantidos sob dependência como no caso dos instintos
desinibidos.
Contra isso, existe uma inegável diminuição nas potencialidades de satisfação. O
sentimento de felicidade derivado da satisfação de um selvagem impulso instintivo não
domado pelo ego é incomparavelmente mais intenso do que o derivado da satisfação
de um instinto que já foi domado. A irresistibilidade dos instintos perversos e,
talvez, a atração geral pelas coisas proibidas encontram aqui uma explicação econômica.
Outra técnica para afastar o
sofrimento reside no emprego dos deslocamentos de libido que nosso aparelho
mental possibilita e através dos quais sua função ganha tanta flexibilidade. A tarefa
aqui consiste em reorientar os objetivos instintivos de maneira que eludam a frustração
do mundo externo. Para isso, ela conta com a
assistência da sublimação dos
instintos. Obtém-se o máximo quando se consegue intensificar suficientemente a
produção de prazer a partir das fontes do trabalho psíquico e intelectual. Quando
isso acontece, o destino pouco pode fazer contra nós. Uma satisfação desse tipo, como,
por exemplo, a alegria do artista em criar, em dar corpo às suas fantasias, ou a do
cientista em solucionar problemas ou descobrir verdades, possui uma qualidade
especial que, sem dúvida, um dia poderemos caracterizar em termos
metapsicológicos.
Atualmente, apenas de forma figurada podemos dizer que tais satisfações
parecem ‘mais refinadas e mais altas’. Contudo, sua intensidade se revela muito
tênue quando comparada com a que se origina da satisfação de impulsos
instintivos grosseiros e primários; ela não convulsiona o nosso ser físico. E o ponto fraco desse
método reside em não ser geralmente aplicável, de uma vez que só é acessível a
poucas pessoas. Pressupõe a posse de dotes e disposições especiais que, para qualquer fim
prático, estão longe de serem comuns. E mesmo para os poucos que os possuem, o
método não proporciona uma proteção completa contra o sofrimento. Não cria uma armadura
impenetrável contra as investidas do destino e habitualmente falha quando a
fonte do sofrimento é o próprio corpo da pessoa.
Enquanto esse procedimento
já mostra claramente uma intenção de nos tornar independentes do mundo externo
pela busca da satisfação em processos psíquicos internos, o procedimento seguinte
apresenta esses aspectos de modo ainda mais intenso. Nele, a distensão do
vínculo com a realidade vai mais longe; a satisfação é obtida através de ilusões,
reconhecidas como tais, sem que se verifique permissão para que a discrepância entre elas e a
realidade interfira na sua fruição. A região onde essas ilusões se originam é a
vida da imaginação; na época em que o desenvolvimento do senso de realidade se efetuou,
essa região foi expressamente isentada das exigências do teste de realidade e posta de
lado a fim de realizar desejos difíceis de serem levados
a termo. À frente das satisfações
obtidas através da fantasia ergue-se a fruição das obras de arte, fruição que, por
intermédio do artista, é tornada acessível inclusive àqueles que não são criadores. As
pessoas receptivas à influência da arte não lhe podem atribuir um valor alto
demais como fonte de prazer e consolação na vida. Não obstante, a suave narcose a que a
arte nos induz, não faz mais do que ocasionar um afastamento passageiro das
pressões das necessidades vitais, não sendo suficientemente forte para nos
levar a esquecer a aflição real.
Um outro processo opera de modo
mais energético e completo. Considera a realidade como a única inimiga e
a fonte de todo sofrimento, com a qual é impossível viver, de maneira que, se
quisermos ser de algum modo felizes, temos de romper todas as relações com ela. O eremita
rejeita o mundo e não quer saber de tratar com ele.
Pode-se, porém, fazer mais do que
isso; pode-se tentar recriar o mundo, em seu lugar construir um outro mundo, no qual
os seus aspectos mais insuportáveis sejam eliminados e substituídos por
outros mais adequados a nossos próprios desejos. Mas quem quer que, numa atitude de
desafio desesperado, se lance por este caminho em busca da felicidade, geralmente
não chega a nada. A realidade é demasiado forte para ele. Torna-se um louco; alguém
que, a maioria das vezes, não encontra ninguém para ajudá-lo a tornar real o seu
delírio.
Afirma-se, contudo, que cada um de nós se comporta, sob determinado
aspecto, como um paranóico, corrige algum aspecto do mundo que lhe é insuportável pela
elaboração de um desejo e introduz esse delírio na realidade. Concede-se especial
importância ao caso em que a tentativa de obter uma certeza de felicidade e uma
proteção contra o sofrimento através de um remodelamento delirante da
realidade, é efetuada em comum por um considerável número de pessoas. As religiões
da humanidade devem ser classificadas entre os delírios de massa desse tipo. É
desnecessário dizer que todo aquele que partilha um delírio jamais o reconhece como
tal.
Não pretendo ter feito uma
enumeração completa dos métodos pelos quais os homens se esforçam para conseguir
a felicidade e manter afastado o sofrimento; sei também que o material poderia ter
sido diferentemente disposto. Ainda não mencionei um processo – não por
esquecimento, mas porque nos interessará mais tarde, em relação a outro
assunto. E como se poderia esquecer, entre todas as outras, a técnica da arte de viver? Ela
se faz visível por uma notável combinação de aspectos característicos. Naturalmente,
visa também a tornar o indivíduo independente do Destino (como é melhor chamá-lo)
e, para esse fim, localiza a satisfação em processos mentais internos, utilizando, ao
proceder assim, a deslocabilidade da libido que já
mencionamos.Mas ela não volta as costas ao mundo externo; pelo contrário, prende-se aos objetos
pertencentes a esse mundo e obtém felicidade de um relacionamento emocional com
eles. Tampouco se contenta em visar a uma fuga do desprazer, uma meta, poderíamos
dizer, de cansada resignação; passa por ela sem lhe dar atenção e se aferra ao
esforço original e apaixonado em vista de uma consecução completa da felicidade. Na
realidade, talvez se aproxime mais dessa meta do que qualquer outro método.
Evidentemente, estou falando da modalidade de vida que faz do amor o centro de tudo, que
busca toda satisfação em amar e ser amado. Uma atitude psíquica desse tipo chega
de modo bastante natural a todos nós; uma das formas através da qual o amor se
manifesta – o amor sexual – nos proporcionou nossa mais intensa experiência de uma
transbordante sensação de prazer, fornecendo-nos assim um modelo para nossa busca
da felicidade. Há, porventura, algo mais natural do que persistirmos na busca da
felicidade do modo como a encontramos pela primeira vez? O lado fraco dessa
técnica de viver é de fácil percepção, pois, do
contrário, nenhum ser humano
pensaria em abandonar esse caminho da felicidade por qualquer outro. É que nunca
nos achamos tão indefesos contra o sofrimento como quando amamos, nunca tão
desamparadamente infelizes como quando perdemos o
nosso objeto amado ou o seu amor.
Isso, porém, não liquida com a técnica de viver baseada no valor do amor como um
meio de obter felicidade. Há muito mais a ser dito a respeito.
Daqui podemos passar à
consideração do interessante caso em que a felicidade na vida é predominantemente
buscada na fruição da beleza, onde quer que esta se apresente a nossos sentidos e a
nosso julgamento – a beleza das formas e a dos gestos humanos, a dos objetos naturais e
das paisagens e a das criações artísticas e mesmo científicas. A atitude estética
em relação ao objetivo da vida oferece muito pouca proteção contra a ameaça do
sofrimento, embora possa compensá-lo bastante. A fruição da beleza dispõe de uma
qualidade peculiar de sentimento, tenuemente intoxicante. A beleza não conta
com um emprego evidente; tampouco existe
claramente qualquer necessidade
cultural sua. Apesar disso, a civilização não pode dispensá-la. Embora a ciência da
estética investigue as condições sob as quais as coisas são sentidas como belas, tem sido
incapaz de fornecer qualquer explicação a respeito
da natureza e da origem da
beleza, e, tal como geralmente acontece, esse insucesso vem sendo escamoteado sob um
dilúvio de palavras tão pomposas quanto ocas. A psicanálise, infelizmente, também
pouco encontrou a dizer sobre a beleza. O que parece certo é sua derivação do
campo do sentimento sexual. O amor da beleza parece um exemplo perfeito de um impulso
inibido em sua finalidade.’Beleza’ e ‘atração’ são, originalmente, atributos do
objeto sexual. Vale a pena observar que os próprios
órgãos genitais, cuja visão é
sempre excitante, dificilmente são julgados belos; a qualidade da beleza, ao
contrário, parece ligar-se a certos caracteres sexuais secundários.
A despeito da deficiência de
minha enumeração, aventurar-me-ei a
algumas observações à guisa de
conclusão para nossa investigação. O programa de tornar-se feliz, que o princípio
do prazer nos impõe,ver, não pode ser realizado; contudo, não devemos – na
verdade, não podemos – abandonar nossos esforços de aproximá-lo da consecução, de uma
maneira ou de outra. Caminhos muito diferentes podem ser tomados nessa direção,
e podemos conceder prioridades quer ao aspecto positivo do objetivo, obter
prazer, quer ao negativo, evitar o desprazer. Nenhum desses caminhos nos leva a tudo o
que desejamos. A felicidade, no reduzido sentido em que a reconhecemos como possível,
constitui um problema da economia da libido do
indivíduo. Não existe uma regra
de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que
modo específico ele pode ser salvo. Todos os tipos de diferentes fatores operarão a fim
de dirigir sua escolha. É uma questão de quanta
satisfação real ele pode esperar
obter do mundo externo, de até onde é levado para tornar-se independente dele, e,
finalmente, de quanta força sente à sua disposição para alterar o mundo, a fim de
adaptá-lo a seus desejos. Nisso, sua constituição psíquica desempenhará papel
decisivo, independentemente das circunstâncias externas. O homem
predominantemente erótico dará preferência aos seus relacionamentos emocionais com
outras pessoas; o narcisista que tende a ser auto-suficiente, buscará suas satisfações
principais em seus processos mentais internos; o homem de ação nunca abandonará o
mundo externo, onde pode testar sua força.
Quanto ao segundo desses tipos, a
natureza de seus talentos e a parcela de sublimação instintiva a ele aberta decidirão
onde localizará os seus interesses. Qualquer escolha levada a um extremo condena o
indivíduo a ser exposto a perigos, que surgem caso uma técnica de viver, escolhida
como exclusiva, se mostre inadequada. Assim como o negociante cauteloso evita
empregar todo seu capital num só negócio, assim também, talvez, a sabedoria popular nos
aconselhe a não buscar a totalidade de nossa satisfação numa só aspiração. Seu
êxito jamais é certo, pois depende da convergência de muitos fatores, talvez mais do
que qualquer outro, da capacidade da constituição psíquica em adaptar sua função ao
meio ambiente e então explorar esse ambiente em vista de obter um rendimento de
prazer. Uma pessoa nascida com uma constituição instintiva especialmente
desfavorável e que não tenha experimentado corretamente a transformação e a redisposição de
seus componentes libidinais indispensáveis às realizações posteriores, achará
difícil obter felicidade em sua situação externa,em especial se vier a se defrontar
com tarefas de certa dificuldade. Como uma última técnica de vida, pelo que menos
lhe trará satisfações substitutivas, é-lhe oferecida a fuga para a enfermidade
neurótica, fuga que geralmente efetua quando ainda é jovem. O homem que, em anos
posteriores, vê sua busca da felicidade resultar em nada ainda pode encontrar consolo
no prazer oriundo da intoxicação crônica, ou então se empenhar na desesperada
tentativa de rebelião que se observa na psicose.
A religião restringe esse jogo de
escolha e adaptação, desde que impõe igualmente a todos o seu próprio
caminho para a aquisição da felicidade e da proteção contra o sofrimento. Sua técnica
consiste em depreciar o valor da vida e deformar o quadro do mundo real de maneira
delirante – maneira que pressupõe uma
intimidação da inteligência. A
esse preço, por fixá-las à força num estado de infantilismo psicológico e por
arrastá-las a um delírio de massa, a religião consegue poupar a muitas pessoas uma
neurose individual. Dificilmente, porém, algo mais.
Existem, como dissemos, muitos
caminhos que podem levar à felicidade passível de ser atingida pelos homens, mas nenhum
que o faça com toda segurança. Mesmo a religião não consegue manter sua promessa.
Se, finalmente, o crente se vê obrigado a falar dos ‘desígnios inescrutáveis’ de
Deus, está admitindo que tudo que lhe sobrou, como último consolo e fonte de prazer
possíveis em seu sofrimento, foi uma submissão incondicional. E, se está
preparado para isso, provavelmente poderia ter-se poupado o détour que efetuou.
("O Mal-Estar Na Civilização" - Sigmund Freud)