terça-feira, 1 de maio de 2012

MEU POEMA PREFERIDO - "TABACARIA"

Considero o poema "Tabacaria" de Fernando Pessoa, usando o heterônimo de Álvaro de Campos meu poema preferido. Sinto-me como se estivesse escrito esse poema, tal a minha identidade com ele. Esse poema é a minha vida ou o que penso que foi até agora a minha vida. De vez enquando eu reenvio ou republico esse poema.

Talvez seja o poema mais conhecido de Álvaro de Campos. Oscilando entre o mundo interior e a realidade cósmica universal , o poeta trata, ao mesmo tempo, da angústia com o cotidiano e dos sonhos de libertação. Isso pode ser observado a partir dos primeiros versos, cujo sentido vai se constituir na base de todo seu poema. Repare que o poeta é absolutamente niilista em relação a si próprio (“Não sou nada./ Nunca serei nada./ Não posso querer ser nada” ), mas, em compensação, ele sabe que tem “todos os sonhos do mundo”.

Fechado em seu quarto, solitário, o eu-poético contempla uma rua, onde percebe um mistério, que é a morte e o destino que ninguém vê. Essa percepção extraordinária das coisas se dá devido à sua grande capacidade imaginativa, que o faz ver o que os outros não podem ver. E para mim, é exatamente isso que distingue Fernando Pessoa de outros grandes poetas, inclusive alguns brasileiros, ou seja, suas poesias refletem algo mais, algo de alguém que enxergava além, além do que os outros podiam ver. 

Pessoa não era apenas um poeta, era um místico. Vivendo seus sonhos, ele procura esquecer toda aprendizagem (isto é, aquilo tudo que aprendeu com os homens) e parte em busca da natureza, contudo essa solução não o satisfaz, na medida em que se sente desconfortável em qualquer lugar que esteja (“estrangeiro aqui, como em toda parte” dirá o poeta em outro poema).  

Álvaro de Campos é radicalmente diferente de Alberto Caeiro (e mesmo de Ricardo Reis); outros heterônimos de Fernando Pessoa, sua angústia, sua lucidez não permitem que seja inocente, natural.  

Voltar à natureza torna-se uma utopia inútil. Na seqüência, o poeta volta a opor a fantástica capacidade de sonhar à limitação do mundo exterior. Mas a sensação de euforia com o sonho não dura muito; mais adiante do poema, ele toma consciência de que os sonhos nada valem, pois as “aspirações altas e nobres e lúcidas” talvez nem vejam “a luz do sol” nem atinjam “ouvidos de gente”.  

Na verdade, “O mundo é para quem nasce para o conquistar / E não para quem sonha que pode conquistá-lo”, ainda que tenha razão. Por isso, apesar de ter conquistado mais do que o grande conquistador Napoleão, de ter amado mais do que Cristo e de ter filosofado mais que Kant, isso de nada vale, na medida em que tudo se processou na imaginação.

Para expressar essa sua impotência perante a realidade, Álvaro de Campos serve-se da imagem do homem que espera que lhe abram a porta numa parede sem porta, ou do homem que tenta fazer que sua voz chegue até Deus, cantando dentro de um poço tapado. Assim, o poeta se vê como um “escravo cardíaco de estrelas”, ou seja, uma pessoa que sonha com as estrelas e sofre de uma doença cardíaca, que o impede de ter emoções fortes, ou como quem só conquista tudo em sonhos. O resultado é um distanciamento cada vez maior da realidade, do mundo visível. A consciência disso causa-lhe um cansaço, um sofrimento de maneira que, passa a invejar uma menina que come chocolates inocentemente. 

Nesse momento, Álvaro de Campos toca num aspecto que é uma constante na obra de Fernando Pessoa: o de que o pensar é doloroso, por impedir o homem de ser feliz. Na outra estrofe, ao sentir o vazio dentro se si, o poeta procura alguma coisa que o inspire. Por isso recorre a musas inspiradoras do passado, mas a sensação de vazio continua a mesma, já que seu “coração é um balde despejado”. Na realidade, Álvaro de Campos expressa aqui a angústia do homem moderno, que não encontra mais ponto de apoio para as suas inquietações e, por isso mesmo, se entrega ao desespero. Essa consciência da inutilidade de tudo leva Campos a sentir-se um exilado, um ser à parte em relação à humanidade. 

Observe que, ele imagina o mundo como se fosse um teatro, onde todos representam e o “eu” é o único que não sabe nem pode representar. Devido a isso, seu lugar no teatro é no vestiário e jamais no palco.  

Os versos finais do poema colocam frente a frente o eu-poético e o dono da tabacaria que representa o homem comum, o homem sem inquietações metafísicas. Ao vê-lo, o poeta experimenta uma sensação de desconforto e passa a ter a sensação da absoluta inutilidade de tudo, até da própria poesia. 

O poema fecha com a absoluta solidão do poeta, que tem consciência de que nada vale a pena, enquanto o dono da tabacaria, sem consciência alguma do que o cerca, apenas sorri. 

Leia e releia e reflita sobre o poema “Tabacaria”, uma obra-prima. É longo, mas vale a pena. Vou colocar em negrito as partes que mais gosto, mais geniais:

TABACARIA

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.


Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam:),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,

E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.

A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?


Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!

E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
[b]Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?

Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão
.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,

E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.

Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,

Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.

Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem ama