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Digo que não sou um homem puro
Não vou lhe dizer que sou um homem puro.
Entre outras coisas
resta saber se o puro de fato existe.
Ou se é, digamos, necessário.
Ou possível.
Ou se tem gosto bom.
Acaso você já provou a água quimicamente pura,
a água de laboratório,
sem um grão de terra ou de esterco,
sem o pequeno excremento de um pássaro,
a água feita apenas de oxigênio e hidrogênio?
Puá! que porcaria.
Não lhe digo, pois, que sou um homem puro,
não lhe digo isso, mas bem o contrário.
Que amo (às mulheres, naturalmente,
pois meu amor pode dizer seu nome),
e gosto de comer carne de porco com batatas,
e grão-de-bico e chouriço, e
ovos, frango, carneiro, peru,
peixe e mariscos,
e bebo rum e cerveja e aguardente e vinho,
e fornico (inclusive com o estômago cheio).
Sou impuro, o que quer que lhe diga?
Completamente impuro.
No entanto,
creio que há muitas coisas puras no mundo
que não são mais que pura merda.
Por exemplo, a pureza da virgindade nonagenária.
A pureza dos noivos que se masturbam
em vez de se deitarem juntos numa pousada.
A pureza dos internatos, onde
abre suas flores de sêmen provisional
a fauna pederasta.
A pureza dos clérigos.
A pureza dos acadêmicos.
A pureza dos gramáticos.
A pureza dos que asseguram
que devemos ser puros, puros, puros.
A pureza dos que nunca tiveram blenorragia.
A pureza da mulher que nunca lambeu uma glande.
A pureza do homem que nunca sugou um clitóris.
A pureza daquela que nunca pariu.
A pureza daquele que nunca procriou.
A pureza daquele que se dá golpes no peito, e
diz santo, santo, santo,
quando é um diabo, diabo, diabo.
Enfim, a pureza
de quem não chegou a ser suficientemente impuro
para saber o que é a pureza.
Ponto, data e assinatura.
Assim o deixo escrito.
Tradução: Marcelo Tápia
*
Nicolás Guillén, poeta cubano, nascido em Camaguey, em 1902, e morto em Havana, em 1989, é considerado um dos expoentes da poesia hispano-americana e da poesia negra do século XX. Tido como o "poeta nacional de Cuba" em seu país, dedicou grande parte de sua obra a temas sociais; militante comunista, participou ativamente do processo revolucionário cubano, tendo sido eleito presidente da Unión Nacional de Escritores y Artistas de Cuba, cargo em que permaneceu até sua morte. Em sua produção literária - iniciada no âmbito do pós-modernismo e da vanguarda da década de 20 - costuma-se distinguir três vertentes: a poesia mulata (na qual reelabora ritmos, léxico e formas expressivas da fala e da canção cubanas), a poesia político-social e a poesia de raiz folclórica. Publicou, entre outros, os livros: Motivos del son (1930), Poemas mulatos (1931),Cantos para soldados y sones para turistas (1937), La paloma de vuelo popular (1958), Elegias(1958), Poemas de amor (1964), Tengo (1964), El gran zôo (1967) e La rueda dentada (1972).