Olha o bicho pegando
Ruy Fabiano
O poeta e político francês Alphonse de Lamartine, que
nasceu (1790) ao tempo em que a Revolução Francesa dava
seus primeiros passos, viveu o suficiente para conviver com
as consequências nefastas que, por décadas, afligiu seu
país.
E cunhou uma sentença implacável que resume frustração e
desencanto com a lógica revolucionária: “A mais homicida e
mais terrível das paixões que se pode infundir às massas é a
paixão do impossível”. Paixão atualíssima, como se vê.
Ela se aplica aos que deflagraram o movimento que há duas
semanas ocupa as ruas do país – e já não o controlam. Não
dá para comparar com os anteriores, das diretas e do
impeachment: ambos tinham foco e caminho para
concretizá-lo com alguma rapidez.
O das diretas desembocou na candidatura de Tancredo
Neves e no fim do regime militar; o do impeachment obteve
o que queria, tirando Fernando Collor da Presidência da
República. E esse, o que quer? Tudo, o que, em termos
práticos, é muito parecido com nada – e não se resolve
(quando se resolve) com rapidez.
O que fazer então? Ninguém sabe. Sabe-se apenas que um
ciclo se fechou, mas ignora-se qual está sendo aberto.
Há mais semelhança com 1964, no sentido de que há uma
condenação conjuntural, focada em múltiplos aspectos. Mas
em 1964 havia a Guerra Fria e antagonismos ideológicos
nítidos: ou se estava de um lado ou de outro. Hoje, não: o
consenso está apenas na condenação, não na construção
de alternativas.
Uns protestam porque acham que o governo não é
suficientemente esquerdista; outros porque é. Outros ainda
não sabem o que querem, somente o que não querem:
corrupção, mau uso do recurso público, bandalheira política.
Uns querem menos Estado, mas pedem coisas (como tarifa
zero) que só se realizam com mais Estado. E outros fazem
apenas uma catarse pessoal, num grito de revolta que se
soma à ação pragmática dos vândalos e resulta nos atos de
violência.
Não adianta falar da polícia. Ela não é causa, mas
consequência. Existe para reprimir. Em qualquer país
democrático do mundo, a invasão da sede dos poderes
constituídos seria reprimida com muito maior contundência.
Imagine-se uma ocupação do Capitólio ou da Prefeitura de
Nova York: os agressores seriam tachados, no mínimo, de
terroristas – e seriam presos em condições bem mais
agravosas que as prisões até aqui efetuadas.
As redes sociais estão cheias de cenas de agressão policial,
mas parcas no registro das ações que as motivaram, ambas
lamentáveis, mas inerentes ao processo deflagrado. O
vandalismo está sendo espontâneo? O que se pretende com
ele?
Sabe-se que há grupos radicais empenhados em entornar o
caldo e que esse tipo de ação gera adesões de
personalidades psicopáticas que com ela se identificam.
O ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência,
Gilberto Carvalho, o homem de Lula e do PT no governo
Dilma (e, convém não esquecer, interlocutor com os
movimentos sociais), avisou no final do ano passado que,
neste ano, “o bicho vai pegar”.
Não pode ser coincidência, a menos que se lhe atribuam
dons proféticos, que este primeiro semestre registre tantas
ações violentas no cenário social do país, desde as invasões
de terras produtivas por índios e MST, até manifestações
contra um obscuro pastor evangélico. Há uma agenda
política por trás desses atos.
Só que – e aí está a perplexidade geral – nem mesmo os
que a conceberam previram as dimensões alcançadas. O
temário diversificou-se, saiu do controle e será necessário
muito tempo para entender o que está em pauta.
No início da campanha das diretas, quando não se sabia
ainda as proporções que alcançaria, Tancredo Neves optou
pela cautela. E respondeu o que então pensava: “Não
embarco em onda; espero que ela quebre para examinar a
espuma”. A espuma o levou à Presidência da República.
A onda está quebrando e alguns políticos se precipitam em
nela surfar, sem paciência ou sabedoria para aguardar o
exame da espuma. Uma coisa é certa: se os partidos
tentarem tirar partido do que ocorre vão quebrar a cara. São
eles os vilões do processo.
É hora de pensarem nas reformas que há anos evitam, na
tentativa de preservar suas zonas de conforto. Acabou o
conforto.
Ruy Fabiano é jornalista.