Meu Senhor, tende piedade dos que andam de bonde
e sonham no longo percurso com automóveis, apartamentos...
Mas tende piedade também dos que andam de automóvel,
quando enfrentam a cidade movediça de sonâmbulos, na direção.
Tende piedade das pequenas famílias suburbanas
e em particular dos adolescentes que se embebedam de domingos,
mas tende mais piedade ainda de dois elegantes que passam
e sem saber inventam a doutrina do pão e da guilhotina.
Tende muita piedade do mocinho franzino, três cruzes, poeta,
que só tem de seu as costelas e a namorada pequenina,
mas tende mais piedade ainda do impávido forte colosso do esporte
e que se encaminha lutando, remado, nadando para a morte.
Tende imensa piedade dos músicos dos cafés e casas de chá
que são virtuoses da própria tristeza e solidão,
mas tende piedade também dos que buscam silêncio
e súbito se abate sobre eles uma ária da Tosca.
Não esquecei também em vossa piedade os pobres que enriqueceram
e para quem o suicídio ainda é a mais doce solução,
mas tende realmente piedade dos ricos que empobreceram
e tornam-se heróicos e à santa pobrea dão ar de grandeza.
Tende infinita piedade dos vendedores de passarinhos,
que em suas alminhas claras deixam a lágrima e a incompreensão,
e tende piedade também, menor embora, dos vendedores de balcão
que amam as frequesas e saem de noite, quem sabe onde vão...
Tende piedade da mulher no primeito coito,
Onde se cria a primeira alegria da criação
e onde se consuma a tragédia dos anjos
e onde a morte encontra a vida em desintegração.
Tende piedade da mulher no instante do parto,
onde ela é como a água explodindo em convulsão,
onde ela é como a terra vomitando cólera,
onde ela é como a dual parindo desilusão.
Tende piedade das mulheres chamadas desquitadas,
porque nelas se refaz misteriosamente a virgindade,
mas tende piedade também das mulheres casadas,
que se sacrificam e se simplificam a troco de nada.
Tende piedade, Senhor, das mulheres chamadas vagabundas,
que são desgraçadas e são infecundas,
mas que vendem barato muito instante de esquecimento
e em paga o homem mata com a navalha, com o fogo,
com o veneno.
Tende piedade, Senhor, das primeiras namoradas
de corpo hermético e coração patético,
que saem à rua felizes mas que sempre entram desgraçadas,
que se crêem vestidas mas que em verdade vivem nuas.
Tende piedade, Senhor, de todas as mulheres,
que ninguém mais merece tanto amor e amizade,
que ninguém mais deseja tanto poesia e sinceridade,
que ninguém mais precisa tanto de alegria e serenidade.
Tende piedade delas, Senhor, que são puras,
que são crianças e são trágicas e são belas,
que caminham ao sopro dos ventos e que pecam
e que têm a única emoção da vida nelas.
Tende piedade, Senhor, das santas mulheres,
dos meninos velhos, dos homens humilhados - sede enfim
piedoso com todos, que tudo merece piedade
e se piedade Vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!
(Vinicius de Moraes)