quarta-feira, 29 de junho de 2011

Afinal de contas, o que nos diz Gurdjieff ?





Podemos iniciar essa tentativa de simplificação a partir da sua idéia de que o homem, tal como existe na atualidade, se observarmos os seus comportamentos e reações, não pode ser encarado como um ser consciente, no domínio pleno das suas faculdades mentais, emocionais e mesmo, dos seus movimentos físicos.

O ser humano "normal" não pode ser considerado como um "homem desperto", ou seja, plenamente alerta ou "desperto", frente aos estímulos do meio ambiente. Na realidade, segundo Gurdjieff ele está dormindo de olhos abertos.

Além disso, diz Gurdjieff, uma observação mais cuidadosa mostra que além de estar "dormindo ", o homem moderno apresenta, no decorrer da sua vida cotidiana, um conjunto de comportamentos e reações que só podem ser consideradas como automáticas ou "condicionadas". Dessa maneira, o ser humano não passaria de uma espécie de "Cão de Pavlov" cujo comportamento poderia ser deliberadamente provocado e controlado de forma externa.

Esses condicionamentos, segundo Gurdjieff estaria não só presentes na esfera das atividades físicas do ser humano, mas também a nível da sua emotividade e mesmo, no seu pensamento, pouco restando de possibilidades para uma real expressão de criatividade ou de espontaneidade, que representariam, no caso, fenômenos raros e espúrios.

Embora possa parecer chocante à primeira vista, esse conceito do "homem adormecido" não representa uma idéia gurdjeffiana original, já que podemos identificar conceitos semelhantes dentro do Budismo, com os Filósofos Pré-Socráticos (Heráclito de Éfeso (2)) , e na tradição Cristã, no episódio do Monte das Oliveiras, onde Cristo sofre a agonia da antecipação do seu sacrifício, enquanto que os seus discípulos dormiam, apesar de terem sido avisados para manter a vigília. Da mesma maneira podemos identificar o mesmo tema dentro do Sufismo (através de frases e comentários feitos pelo Profeta Maomé e outras fontes).

A proposta de trabalho de Gurdjieff para tentar agir sobre esta situação parte do pressuposto que todas as vezes que o ser humano perdesse o contato com a sua própria identidade ou seja, a sua "sensação de ser", ocorre uma espécie de "transferência" quase que automática e instantânea da qualidade de atenção centrada nessa sensação interna de "ser" , para algum estímulo exterior que venha a lhe "chamar a atenção" naquele momento. Assim, com a sua atenção sistematicamente voltada para os estímulos exteriores, o ser humano passa a se "esquecer de si próprio" e "adormecendo" em conseqüência.


A chave para o "despertar", portanto, estaria no "lembrar-se de si mesmo continuamente" para que a dimensão individual não viesse a se perder naquilo que Gurdjieff chamou de "identificação externa". Cumpre-se notar que a definição atual do termo "externa" não implica nos eventos externos ao organismo do ser humano, mas sim, de quaisquer elementos, sejam do meio exterior (a televisão, o cinema e mesmo as atividades rotineiras do dia a dia) ou interior (pensamentos, imagens, preocupações, ansiedades e principalmente, fantasias) que façam com que a sensação de "ser" seja deslocada do seu lugar correto.


Atualmente sabemos que os seres humanos tem um limiar bastante baixo nas suas capacidades em manter a atenção focalizada frente a estímulos repetitivos e monótonos ou então, frente a estímulos complexos que exigem um esforço no sentido de tentar acompanhar informações provenientes de diferentes fontes ao mesmo tempo. Embora tal tendência provavelmente seja um resíduo de um processo de auto-sobrevivência que herdamos dos nossos antepassados animais, hoje em dia sem muito valor como fator de garantia da auto-preservação. Esse mecanismo de rebaixamento do limiar da atenção nos seres humanos é usado nos processos denominados de "lavagem cerebral" e também nas técnicas modernas de publicidade.


Nessa sua incapacidade de manter um nível "ótimo" de atenção, diz Gurdjieff, o organismo após algum tempo não mais é capaz de reconhecer a sua própria identidade e passa a ficar "fascinado" com o desenrolar dos acontecimentos externos a si mesmo, entrando numa espécie de "transe" onde a caraterística principal é a perda do sentido de "eu". A esse "transe" Gurdjieff denominava de "vida cotidiana" e que Gurdjieff associava com uma diminuição da consciência humana, um processo que ele considerava universal e inevitável para a grande maioria da humanidade com exceção de alguns poucos capazes de realizarem os intensos esforços necessários para virem a se libertar do "horror da situação humana".


A solução gurdjeffiana para esta diminuição da qualidade e intensidade da consciência está no treinamento da função psicológica da atenção nas suas diversas tonalidades. Este treinamento visa uma sensibilização e reforço da capacidade da concentração e manutenção do seu foco em objetos definidos, no caso, na própria sensação de "ser" de maneira contínua. Isto não difere muito das técnicas clássicas preconizadas pela Ioga, Zen-Budismo, Meditação Transcendental, etc.


Tal treinamento da atenção envolve a realização de "exercícios" para o desenvolvimento de tais níveis desejáveis da atenção. Estes exercícios exigem esforços consideráveis para serem realizados, físicos, (com a realização de diferentes tipos de movimentos , posturas, danças complexas e dessincrônicas, que foram planejadas no sentido de exigir o máximo possível da atenção), emocionais (com a realização de "sacrifícios e super- esforços" onde o componente emocional é desnudado e desafiado a mudar as suas reações emocionais habituais) e intelectuais (como por exemplo, ser capaz de realizar exercícios de contagens e operações matemáticas mentais; ser capaz de trabalhar rapidamente com jogos de palavras e imagens visuais, etc. (1) e ser capaz de colocar a atenção em diferentes tarefas intelectuais ao mesmo tempo com a finalidade de desenvolver rapidez e destreza de raciocínio, ser capaz de encontrar diferentes perspectivas e respostas para o mesmo tipo de problema ou situação proposta, etc.).


Estas são apenas algumas técnicas que fazem parte de um conjunto maior, que representa um currículo de atividades propostas de forma individualizada de acordo com as necessidades, qualidades e defeitos de personalidade que o indivíduo participante possa apresentar. A partir do treinamento da atenção, pode-se chegar à "auto-observação" ou seja uma forma especial da atenção voltada temporariamente, porém prolongadamente, à observação dos comportamentos, reações, processos psicológicos individuais que, quando realizada durante um determinado período de tempo, permite a identificação de conjuntos correlatos de comportamentos e reações que definem a atuação de "eus particulares" que surgem em determinados contextos, como por exemplo, um "eu profissional" em contraposição a um "eu dona de casa".


O objetivo da técnica é a produção de um "eu observador" capaz de observar com absoluta imparcialidade os fenômenos de expressão e reações da personalidade que agora passa a ser percebida como extremamente mutável, inconstante e sensível a estímulos externos. A partir deste "eu" seria possível chegar a uma estrutura de personalidade mais estável, capaz de modificar e corrigir de maneira eficiente determinados padrões de comportamento considerados inaceitáveis. Aqui podemos identificar uma confluência entre a técnica gurdjeffiana e as psicoterapias clássicas, no sentido que ambas procuram conscientizar processos, ou seja, de trazer à tona mecanismos "defeituosos" que não eram reconhecidos pela esfera da consciência.


O objetivo de todo esse processo seria tentar trazer á luz da consciência a "característica principal" do indivíduo, ou seja o padrão mais freqüente de expressão da personalidade do indivíduo que, por ser muito ativo, costuma ser desconsiderado na maioria das vezes simplesmente por ser extremamente óbvio. Gurdjieff costumava expor tais "características principais" ao atribuir aos seus discípulos, apelidos freqüentemente constrangedores, diretamente vinculados às suas características principais de tal maneira que o uso repetido do apelido sempre funcionava como uma espécie de "recordação de si próprio".


Igualmente, a capacidade de observar e corrigir padrões errados de comportamento permitiria atuar finalmente sobre a segunda deficiência básica do ser humano que, segundo Gurdjieff, é a facilidade com que este se condiciona.


Portanto, no sistema gurdjeffiano, o ser humano poderia ser considerado como um robô adormecido, realizando tarefas mecânicas e preso a rotinas e processos repetitivos. Tal processo seria reforçado e estimulado pelos mecanismos sociais vigentes, na medida em que propiciam uma ferramenta de controle social eficiente e aceita. Assim o indivíduo é colocado de forma imparcial e muitas vezes, chocante, frente a si mesmo; tem de se observar e aceitar como um mecanismo automatizado mal trabalhado, educado e mal aproveitado. Espera-se que depois de ter "trabalhado em si próprio" durante algum tempo, ele não mais venha a retornar ao estado de "esquecimento" ou de "sono" onde pode continuar alheio das suas deficiências. Algo se modificou dentro dele de forma indelével. Ele agora percebe uma nova realidade dentro e fora de si e sente a necessidade de atuar dentro dessa nova perspectiva.
(Fonte: Instituto Nokhooja)