quinta-feira, 14 de maio de 2009

Senhora do Silêncio


Às vezes quando, abatido e humilde, a própria força de sonhar se me desfolha e se me seca, e o meu único sonho só pode ter como sonho pensar nos meus sonhos, folheio-os então, como a um livro que se folheia e se torna a folhear sem ter mais que palavras inevitáveis. É então que me interrogo sobre quem tu és, figura que atravessas todas as minhas visões demoradas de paisagens outras, e de interiores antigos e de cerimoniais faustosos de silêncio.

Em todos os meus sonhos ou apareces, sonho, ou, realidade falsa, me acompanhas. Visito contigo regiões que são talvez sonhos teus, terras que são talvez corpos teus de ausência, o teu corpo essencial.

Talvez eu não tenha outro sonho senão tu, talvez seja nos teus olhos, encostando a minha face à tua, que eu terei essas paisagens impossíveis, esses tédios falsos, esses sentimentos que habitam a sombra dos meus cansaços e as grutas dos meus desassossegos. Quem sabe se as paisagens dos meus sonhos não são o meu modo de não te sonhar? Eu não sei quem tu és, mas sei ao certo o que sou? Sei eu o que é sonhar para que saiba o que vale o chamar-te o meu sonho? Sei eu se não és uma parte, quem sabe a parte essencial e real, de mim? E sei eu se não sou eu o sonho e tua a realidade, eu um sonho teu e não tu um sonho que eu sonhe?

Que espécie de vida tens? Que modo de ver é o modo como te vejo? Teu perfil? Nunca é o mesmo, mas não muda nunca. E eu digo isto porque o sei, dina que não saiba que o sei. Teu corpo? Vejo-o nu o mesmo que vestido, sentado está na mesma atitude do que quando deitado ou de pé. Que significa isto, que não significa nada?

Tu não és mulher. Nem mesmo dentro de mim evocas qualquer coisa que eu possa sentir feminina. É quando falo de ti que as palavras te chamam fêmea, e as expressões te contormam de mulher. Porque tenho de te falar com ternura e amoroso sonho.

Ocupas o intervalo dos meus pensamentos e os interstícios das minhas sensações. Por isso eu não penso nem te sinto, mas os meus pensamentos são ogivais de te sentir, e os meus sentimentos góticos de evocar-te.

A minha vida é tão triste, e eu nem penso em chorá-la; as minhas horas tão falsas, e eu nem sonho o gesto de parti-las.

Como não te sonhar? Como não te sonhar?

Rezo a ti meu amor porque o meu amor é já uma oração, mas nem te concebo como amada nem te ergo ante mim com santa.

Como não te adorar se só tu és adorável? Como não te amar se só tu és digna do meu amor?

Quem sabe se sonhando-te eu não te crio, real noutra realidade; se não serás minha ali, num outro e puro mundo onde amaremos com outro jeito de abraços e outras atitudes essenciais de posse? Quem sabe mesmo se não existias já e não te criei nem te vi apenas, com outra visão, interior e pura, num outro e perfeito mundo?

Não sei mesmo se não te amei já, num vago onde cuja saudade este meu tédio perene talvez seja. Talvez seja uma saudade minha, corpo de ausência, presença de distância, fêmea talvez por outras razões que não as de sê-lo.

Posso amar-te e também adorar-te porque o meu amor não te possui e a minha adoração não te afasta.

Que o teu silêncio me embale, que a tua voz me adormeça, que o teu mero ser me acaricie e me amacie e me conforte. Anjo da guarda dos abandonados.