terça-feira, 12 de maio de 2009
Fragmentos de Uma Autobiografia
Primeiro entretiveram-me as especulações metafísicas, as idéias científicas depois. Atrairam-me finalmente as sociológicas. Mas em nenhum destes estágios da minha busca da verdade encontrei segurança e alívio. Pouco lia, em qualquer das preocupações. Mas no pouco que lia tantas teorias me cansava de ver, contraditórias, igualmente assentes em razões desenvolvidas, todas elas igualmente prováveis e de acordo com uma certa escolha de fatos que tinha sempre o ar de ser os fatos todos. Se erguia dos livros os meus olhos cansados, ou se dos meus pensamentos desviava para o mundo exterior a minha pertubada atenção, só uma coisa eu via, desmentindo-me toda a utilidade de ler e pensar, arrancando-me uma a uma todas as pétalas da idéia do esforço: a infinita complexidade das coisas, a imensa soma, a prolixa inatingibilidade dos próprios poucos fatos que se poderiam conceber precisos para o levantamento de uma ciência.
O desgosto de não encontrar nada encontra comigo pouco a pouco. Não achei razão nem lógica senão a um cepticismo que nem sequer busca uma lógica para se defender. Em curar-me disto não pensei - porque me havia eu de curar disso? E o que era ser são? Que certeza tinha eu que esse estado de alma deva pertencer à doença? Quem nos afirma que, a ser doença, a doença não era mais desejável, ou mais lógica ou mais do que a saúde?
Nunca encontrei argumentos senão para a inércia. Dia a dia mais e mais se infiltrou em mim a consciência sombria da minha inércia de abdicador. Procurar modos de inércia, apostar-me a fugir a todo o esforço quanto a mim, a toda a responsabilidade social - talhei nessa materia a estátua pensada da minha existência.
Deixei leituras, abandonei casuais caprichos de este ou aquele modo estético da vida. Do pouco que li aprendi a extrair só elementos para o sonho. Do pouco que presenciava, apliquei-me a tirar apenas o que se podia, em reflexo, distante e errado, prolongar mais dentro de mim. Esforcei-me porque todos os meus pensamentos, todos os capítulos quotidianos da minha experiência me fornecessem apenas sensações. Criei à minha vida uma orientação estética. E orientei essa estética para puramente individual. Fi-la minha apenas.
Envelheci pelas sensações...Gastei-me gerando os pensamentos...E a minha vida passou a ser uma febre metafísica, sempre descobrindo sentidos ocultos nas coisas, brincando com o fogo das analogias misteriosas, procrastinando a lucidez integral, a síntese normal para se despir [?].
Hoje sou ascético na minha religião de mim...
Que sonhos tenho? Não sei. Forcei-me por chegar a um ponto onde nem saiba já que penso, em que sonho, o que visiono. Parece-me que sonho cada vez de mais longe, que cada vez mais sonho o vago, o impreciso, o invisionável.
Não tenho teorias a respeito da vida. Se ela é boa ou má não sei, não penso. Para meus olhos é dura e triste, com sonhos deliciosos de permeio. Que me importa o que ela é para os outros?
A vida dos outros só me serve para eu lhes viver, a cada um a vida que me parece que lhes convém no meu sonho.