quinta-feira, 28 de maio de 2009

Resistência

O mundo mudou e eu ainda não me dei conta. Ainda me pego contemplando as estrelas, desafiando a lua e invocando São Jorge para me proteger – com sua espada - do dragão. Muito embora, também aspire corromper o herói em vilão.

O mundo mudou e eu ainda fico de bobeira, vagando noite adentro, madrugada inteira, só para colorir e admirar
borboletas. Ainda busco significados nas lendas, ainda me reservo o direito de cultuar uma Helena. Ainda desenho, costuro e cinjo palavras de otimismo, mesmo quando o mundo parece-me um enorme abismo.

Ainda falo pelos cotovelos mesmo sabendo que o momento pede silêncio. Ainda me recuso a ouvir o óbvio, porque o tédio é o meu ópio. Porém, ainda alimento o opróbrio para fabricar uma bomba-relógio.

O mundo mudou e eu ainda caminho olhando para debaixo da ponte. Só para ver as lavadeiras tecendo longas e alvas cantilenas e as crianças festejando nas águas poluídas as suas existências. O mundo mudou e eu ainda escrevo versos em prosa; ainda falto aula, dissimulo em prova. Ainda desafio o professor, ainda rio para aliviar minha dor.

O mundo mudou e eu ainda leio José de Alencar, ainda choro com o beijo na novela. Torço pela boa sorte da personagem e me penalizo com o castigo do antagonista. Ainda me divirto com a dualidade dos espiritualistas e com a ignóbil racionalidade dos positivistas e de todos os demais istas. Ainda me levo à risca e busco verdade na retidão, só para ouvir a voz do meu coração. Ainda procuro ser justa com um irmão e ser-lhe fiel como a um bom cristão. Ainda acredito em tentação, pecado, obsessão, mas me recuso a ouvir sermão...

O mundo mudou e não deu tempo eu escrever - à mão-livre - uma carta de amor. Não deu tempo eu colar nas curvas-linhas de minha grafia uma boca pintada de carmim. Não deu tempo eu encharcar o texto de perfume e dedicar, ao amado, um fragmento da prosa poética de Eça de Queirós. O mundo mudou e eu não pude cuidar, ninar, alimentar o meu amor.

O mundo mudou e eu ainda sinto vontade de me sentar no banco da praça, e ficar lá - por algum tempo - entre flores, folhas, insetos e pássaros. O mundo mudou e eu ainda sinto saudade do sítio, de tomar banho de chuva quando o sertão anuncia inverno. De mergulhar na água quente do açude nas madrugadas enluaradas.

O mundo mudou e eu ainda busco a Deus e me escandalizo quando, por acaso, sinto-me ateu. O mundo mudou e eu ainda insisto em quebrar barreiras, evocar uma revolução que, de alguma forma, ressignifique simbolicamente os valores humanos.

O mundo mudou e eu mudei? Não sei, não sei... Sei que estou a me perguntar (e já faz algum tempo): ― Quem eu sou?

Enquanto tantas pessoas estão no mundo buscando prazer na transitoriedade e acreditam que há felicidade na superficialidade, eu me pergunto: ― Onde está o sentido da vida?

Talvez, para muitas pessoas esse comportamento, essa viagem, esse mergulho em torno do ser “eu” pareça pura perda de tempo, considerando que o mundo mudou!...

* Texto selecionado, em 3◦ Lugar, na categoria crônica, no XX Concurso Internacional Literário de Inverno, promovido por Arnaldo Giraldo (Edições AG), em agosto de 2006. A escrita fora selecionada para integrar o livro "Ritmo Vital". FERNANDES, Hercília M. Resistência. In: ____. GIRALDO, Arnaldo (Vários Autores). Ritmo vital: conto, poesia e crônica. All Print Editora: São Paulo, 2007, p. 108-109.