Por Marcos Siscar
Para explicar por que escrevo ou por que se escreve usando “de 2.000 a 4.000 palavras”, seria necessário mais do que clareza sobre desejos e estratégias, recalques e políticas. Veríamos se insinuar algo como o gosto pela exposição pública, este espetáculo de autor que, segundo as más línguas, acompanha hoje a experiência da literatura, mais do que a própria leitura – um “excesso” de sujeito no lugar em que o sujeito parece estar em “falta”.
A resposta ao “por que escreve?”, no fundo, deveria envolver considerações que vão da psicanálise ao marxismo, da filosofia à teoria da literatura, expondo-se a elas, ao mesmo tempo; a não ser que se aceitasse com simplicidade o acréscimo de um suplemento de biografia, de anedotas e incidentes pessoais mais imediatamente narcísicos que teriam gerado a obra, tomada agora como objeto de memória ou de testemunho. Ou, então, nos restaria inverter o voyerismo de leitor pressuposto pela pergunta – pois de fato não é da conta do leitor a razão pela qual um escritor escreve.
Privado da escrita literária como “ceia” a ser degustada (como dizia um romancista famoso), que o leitor tome seu café e saia.
Se ocupo as primeiras linhas de meu texto com uma tergiversação que tem aparência de subterfúgio, não é para fugir à questão. Apenas para colocá-la numa situação que me permita começar a interagir com ela. Ninguém está isento das gesticulações narcisistas, a tal ponto que responder a questões desse tipo pode ser intimidante e mesmo criar uma real imobilidade, inevitáveis abstenções.
Do mesmo modo, nenhum escritor, ainda que declaradamente narcisista, aceitaria ocupar o lugar repugnante que lhe é designado pelo interrogatório, ainda que de aparência singelo. Então, o que parece desvio pode ser decisivo para o destino da questão.
Se pensarmos muito nas razões da pergunta “por quê?”, nas motivações que a guiam, quando enunciada, se em suma colocarmos a pergunta entre aspas, talvez consigamos dar a entender o drama da situação. Um dos modos de entender a pergunta é vê-la como a enunciação de um falso problema, de um “ardil”. Por que não perguntamos aos críticos ou aos jornalistas por que escrevem? Por que não temos o hábito de perguntar aos filósofos por que duvidam, ou aos padres por que professam? Ainda que a proposta fosse apenas a de desarmar a empostação dos saberes e das práticas gastas do campo literário, pela evocação crua de uma necessidade íntima ou política, responder à questão, na sua sintaxe alienígena (em “por que escreve?”, a ausência de sujeito torna a frase ambígua), já é cair na sua armadilha, por assim dizer.
A pergunta direciona de antemão aquilo que se pode (e aquilo que não se pode) dizer; a enunciação decide quais são as possibilidades da resposta. Ou então nada disso importa ao leitor desarmado, ao pobre leitor desamado – e seria preciso admitir que minha resposta começa mal.
Então, recomeço. Haveria respostas interessantes para a pergunta “por que escreve?” Por exemplo, aquelas que usam a retórica da não resposta, ou seja, que mobilizam o espírito de colaboração do leitor, para poderem ser lidas como resposta. Por exemplo: “escrever não é preciso”, escreve Alcir Pécora: o leitor não pediu para que o escritor escrevesse (mas teria pedido a opinião do crítico?). A provocação me parece boa, porque ela diz respeito à minha decisão de escrever (ou à decisão de escrever, em geral).
Na medida em que escrevo e que acho importante pensar sobre a razão de escrever (fico imaginando se intelectuais, filósofos, jornalistas pensam a mesma coisa), a ideia de que “escrever não é preciso” me diz respeito. Ela mantém em tensão o horizonte complexo e fértil da pergunta “por que escreve?”. No fundo, a tradição aberta por Bartleby, de Melville, com sua célebre resposta “I would prefer no to” (preferiria não, preferiria que não), acabaria dando um viés bastante estimulante para interagir com o “por quê?” alienígena: preferiria não responder.
Mas, antes dos protestos, esclareço que não acho ruim a pergunta “por que escreve?”. Pelo contrário, a pergunta me soa convincente, sedutora, na sua apóstrofe, na posição que assume não apenas de quem aceita que o escritor escreva, possa escrever, mas de quem vai na direção dessa curiosa (e, dizem, anacrônica) disposição de espírito. Por isso, para não ser totalmente avaro de diversão, e antes que me arrependa, copio aqui um fragmento, na verdade uma anotação que fiz recentemente, na perspectiva longínqua de um projeto de livro, ainda não delineado.
Aspas: “Quando falei de retorno ia falar de volta. Ensaio impôs-se “sobre” e retorno soou melhor. (“Ensaio sobre o retorno”, dizia o título). Penso agora que volta parecia mais coloquial, menos pensativo. Por que, no fundo, o pensativo? Talvez esta seja a questão, e não o retorno. Peso cada palavra que uso. Cada palavra é pesada, deve ser carregada, formulada até que mostre algo do que nela me move. O que no fundo procuro, se no fundo a palavra parece sempre gasta? Talvez procure por que escrevo, ou porque escrevo, enquanto escrevo; talvez a escrita seja o mapa da procura: a razão de buscar escrever, aquilo que no ato me faz escrever, a cada momento. Poderia não escrever? Por que negá-lo? Por que não o não? Sim, poderia. “Eu” poderia dizer isso. Eu é um carroceiro tosco, com sua frágil lanterna. E mesmo que pudesse não escrever, mesmo assim, quereria poder escrever a delícia de não escrever, essa alegria infinda, maior que o sentido de uma vida. E portanto escreveria.
Mas por quê?” Devo deixar anotado que “Carroceiro tosco” é uma imagem de um poema que escrevi em meu último livro. Na verdade, aqui, precisaria dizer carroceiros, pois há muitos em mim que resolveriam a questão de “por que escreve?” com a violência enfadada de “é mais isso do que aquilo”. E o que me interessa na poesia, agora que me defronto com a pergunta, talvez seja justamente a possibilidade de não fazer isso. De não precisar abrir mão de todas as razões (que são aporéticas, contraditórias), de poder, ao contrário, expandir as dificuldades advindas dessas aporias para outros campos discursivos nos quais parecem estar abafadas, subestimadas, silenciadas. Claro, quem responde, mesmo que responda como Bartleby, acaba resolvendo a dificuldade, dá uma forma àquilo que é difícil (não apenas porque múltiplo, mas porque contrariante). De certo modo, o autor de um texto é sempre o carroceiro. Em ocasiões como esta, por exemplo, sempre aparece em mim um carroceiro. Não para defender-me, para poupar-me. Ao colocá-lo sob a luz e dar-lhe espaço para avançar, ao deixá-lo ranger as rodas de sua máquina de explicação, ele vai ganhando corpo, perspectiva, estratégia. Aquilo que carrega em sua carroça, o modo como ignora o que há em torno, como mastiga a areia e a pedra do caminho – tudo isso me expõe, tudo isso me trai.
Então, por estranha que pareça a conclusão, posso dizer que, diante do leitor blasé, ainda não familiarizado com a profunda contradição do olhar que me dirige, dramatizo nosso conflito e “solto o carroceiro”. Não como quem “solta o cachorro”. Mas às vezes um carroceiro deve preparar o terreno. Para muitos, certamente, a quem o susto já não passa de cócegas, de hábito cansado de retóricas e astúcias literárias, seja por experiência própria ou pelo aprendizado indireto do cansaço, apresentar o carroceiro no lugar do poeta é a mesma coisa que incorporar o mau poeta, aquele que explica as razões do escrever, que inflaciona a experiência direta e comum, esta que supostamente nos une a todos, indistintamente. Já ouvi muita gente dizendo que o carroceiro é aquele que estraga o poema. É uma opinião corrente. Mas se alguém “solta o carroceiro” ainda daria para pensar o que é melhor ou pior para o “poema”? A resposta não me parece óbvia. Depois que escrevo um poema, muitas vezes durante a escrita de um poema, e certamente enquanto estou organizando um livro de poemas, o carroceiro mostra-se fundamental, imprime a marca de sua necessidade. É ele que dá tensão e estrutura para aquilo que parece ter sido dado “espontaneamente”, ainda sem sentido, com o afeto da salvação de algo que estaria à beira da perda. É um momento tão excitante e tão duradouro – pois continua depois do livro publicado – que dou de ombros quando um leitor de má vontade acredita que pode ler o livro sem reconstituir o percurso.
O estilo carroceiro, aqui extremado, ao mesmo tempo que dá profundidade ao “vivido”, já não está longe de se constituir como momento de uma sintomatologia geral, e se comunica com o risco deliberado do autismo. Não digo isso apenas a meu respeito, para dar razão ao leitor eventualmente contrariado. O “autismo” da relação com o texto nunca é apenas pessoal: assim como não nos faltam leitores surdos, a surdez não é um atributo que nos distingue. Nem digo isso apenas a meu favor, entenda-me.
Em meu último livro, passou um carroceiro e andou trocando algumas coisas de que não me orgulho. Trocou uma palavrinha justamente no poema que dá título ao livro, com o qual me emociono a cada leitura, e que por isso mesmo para mim ainda não está totalmente escrito. Claro, não vou contar o que ele mudou naquele poema. Isso faz parte da minha escrita, não das nossas confidências. Por outro lado, esse mesmo carroceiro deixou coisas de igual teor, onde teria sido muito mais simples rasurar. Coisas que já antevejo, na pluma do comentador justiceiro, como prova de uma inequívoca cegueira de classe ou de um equivocado projeto estético.
Moral da história: antes dos caprichos sociais, antes das neuroses, dos imbroglios de pensamento, há a negociação, a cena de um conflito que a poesia é capaz de assumir, sem envergonhar-se. A poesia é para mim o nome deste lugar onde uma resposta atravessada se permite. Ao contrário do que supõem os proprietários intelectuais da pergunta, e todos aqueles que registram patentes antigas com cara de novas. Tenho minhas razões, públicas e privadas, para preferir que a resposta esteja sempre atravessada, muitas vezes na garganta. Seria pretensão esperar que as razões do leitor estivessem mais próximas das minhas? Não creio. Há muitos tipos de leitores. Inclusive aqueles para quem ler/escrever poesia é colocar tudo em jogo. E tudo quer dizer algo mais geral que o gênero “poesia”, que a disciplina “estética”, que a produção editorial, que a “vida literária”, que as peripécias sociais e históricas da “cultura”. Não se trata de querer que a poesia “mude” a vida. Por outro lado, se ela já não tiver mudado a vida, qual seria seu interesse? Seria dispensável, como qualquer outra coisa: como a medicina, como a agricultura, como a religião.
A quem interessam minhas razões senão aqueles para os quais essas razões já fazem parte, de modo mais ou menos sabido, mais ou menos formulado, da sua própria “resposta”? Se é que se permitem esta resposta, como a poesia se permite, ou me permite. Quero dizer que aceitar as razões de poesia é aceitar colocar tudo em jogo, e não apenas parte da experiência (lazer, conhecimento, educação). E que isso se aprende, é claro, mas se aprende não simplesmente na forma da consagração ou da denúncia das razões espirituais ou materiais do poeta. Talvez constatar o já-estar-ali do sentido seja uma maneira de levar adiante um tal aprendizado. Este não deixa de ser um modo propício de entender o que acontece quando passamos da poesia para outros regimes de relação com o sentido. Depois de 1.898 palavras, percebo que já levei a discussão a um nível insuportavelmente carroceiro. Devo cumprir o contrato das 2.000 palavras mínimas? A partir daqui, certamente, já não teríamos muito o que nos dizer um ao outro, caro leitor desamado. Eu, pelo menos. Sinto que não. Viro a página e lá estamos, de novo sós. Pergunto-me por quê.