sábado, 22 de maio de 2010

TEMPO DE DEPURAÇÃO

Chega um tempo que não se diz mais: meu Deus!
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor!
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se.
Mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És toda certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa, venha a velhice, que é a velhice?

Teus ombros suportam o mundo.
e ele não pesa mais do que a mão de uma criança.

As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios,
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.

Chegou um tempo que não adianta morrer.
Chegou um tempo que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

(Carlos Drummond de Andrade)