Por períodos infinitamente longos, a pergunta O que é Deus? confundiu a humanidade e continua desafiando a compreensão lógica desde que vivamos com o conceito de que há um paraíso lá em cima, onde Deus está sentado julgando toda a humanidade e castigando todos os que se portarem mal. Ao longo da história, com pouco sucesso, pensadores eminentes tentaram achar uma resposta lógica para esta pergunta problemática. Mas há muitas pessoas também que não querem nem saber disso, ou seja, se existe um Deus ou não, preferem viver suas vidas na matéria, sem se preocupar com essa pergunta. Existem outros que só em falar em Deus, Jesus ou Espírito Santo, pensam logo que se estamos falando em religiões.
Sidarta Gautama, o Buda, praticou tapasya (ascetismo em sânscrito) debaixo de uma figueira-de-bengala e, como alguns, estabeleceu que Deus existe dentro do coração de cada ser humano em forma de amor, compaixão, compreensão e outros atributos positivos dos quais a humanidade é capaz, mas frequentemente escolhe suprimir. Jesus também falou disso ao dizer que "O Reino de Deus está dentro de vós".
A confirmação de que ninguém realmente conhece o verdadeiro Deus por trás de todas essas imagens, religiões e seitas, leva a uma compreensão de que os seres humanos podem somente procurar a verdade e não possuí-la, como muitos fanáticos religiosos afirmam. A busca implica humildade, aceitação, enquanto a posse indica arrogância e soberba.
Quando penso em Deus eu penso assim. Há um poder misterioso indefinível que permeia tudo. Eu o sinto, embora não o veja. É esse poder invisível que se faz sentir e ainda desafia todas as provas, porque é tão contrário a tudo aquilo que eu percebo por meio dos meus sentidos. Transcende os sentidos. Percebo vagamente que enquanto tudo ao meu redor é variável, perene, agonizante e implícito a toda essa mudança, existe um poder vivo que é invariável, que mantém tudo unido, que cria, dissolve e recria. Esse poder ou Espírito que me inspira eu chamo de Espírito Santo...Pois consigo ver que no meio da morte, a vida persiste; no meio da inverdade desse mundo, a verdade persiste; no meio da escuridão, a luz persiste. Consequentemente, eu entendo que Deus é vida, verdade e luz.
A religião nunca me satisfez e frequentemente me enfurece. Por isso resolvi empreender minha própria busca. No processo, aprendi que as religiões nunca pretenderam apoiar a busca por um Deus expansivo e são realmente contrárias a isso. Examinando mais adiante, descobri que os seres humanos aspiravam conhecer Deus bem antes das religiões serem estabelecidas para explorarem a ignorância e a culpa inconsciente das pessoas. Simultaneamente, encontrei uma trindade profana de forças políticas, econômicas e religiosas nutrindo e perpetuando a ganância massiva, a pobreza e a ignorância. Comecei então a me aproximar de pessoas que buscam uma compreensão mais unificada de Deus. Mas são muito poucas pessoas assim.
Em setembro de 2001, quando fui apresentado ao livro ditado por Jesus chamado "Um Curso Em Milagres", muitas dúvidas cruciais foram esclarecidas e, um marco, uma linha divisória, foi establecida na minha busca por Deus. Mas como o próprio Curso diz, o livro não é o único caminho e nem é para todos. Para quem tem dificulades com o Curso, O Divino Espírito Santo dará um outro caminho, mas não acredito que qualquer religião organizada possa ajudar, pelo contrário, você terá que estar disposto a derrubar todas as tuas crenças. Aprender esse Curso requer disposição para questionar cada valor que você possui. O Curso foi enviado para economizar nosso tempo e nos ensinar a retornar passo a passo o caminho da casa do Pai que pensávamos ter perdido. Mas não deixe a teologia das religiões te atrasar. Busque dEUs.
(Paulo Cesar de Oliveira 20.09.2009)
domingo, 20 de setembro de 2009
sábado, 19 de setembro de 2009
DRUMMOND ERÓTICO
Em um momento de descontração, o grande poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu:
"Satânico é meu pensamento a teu respeito,
e ardente é o meu desejo de apertar-te em minha mão,
numa sede de vingança incontestável peloque me fizeste ontem.
A noite era quente e calma e eu estava em minhacama,
quando, sorrateiramente,te aproximaste.
Encostaste o teu corposem roupa no meu corpo nu,
sem o mínimo pudor!
Percebendo minha aparente indiferença,
aconchegaste-te a mim emordeste-me sem escrúpulos.
Até nos mais íntimos lugares.
Eu adormeci.
Hoje quando acordei,
procurei-te numa ânsia ardente,
mas em vão.
Deixaste em meu corpo e no lençol,
provas irrefutáveis do que entre nós ocorreu durante a noite.
Esta noite recolho-me mais cedo,
para na mesma cama te esperar.
Quando chegares, quero te agarrar com avidez e força.
Quero te apertar com todas as forças de minhas mãos.
Só descansarei quando virsair o sangue quente do seu corpo.
Só assim, livrar-me-ei de ti,
pernilongo "filho da puta!"
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"Satânico é meu pensamento a teu respeito,
e ardente é o meu desejo de apertar-te em minha mão,
numa sede de vingança incontestável peloque me fizeste ontem.
A noite era quente e calma e eu estava em minhacama,
quando, sorrateiramente,te aproximaste.
Encostaste o teu corposem roupa no meu corpo nu,
sem o mínimo pudor!
Percebendo minha aparente indiferença,
aconchegaste-te a mim emordeste-me sem escrúpulos.
Até nos mais íntimos lugares.
Eu adormeci.
Hoje quando acordei,
procurei-te numa ânsia ardente,
mas em vão.
Deixaste em meu corpo e no lençol,
provas irrefutáveis do que entre nós ocorreu durante a noite.
Esta noite recolho-me mais cedo,
para na mesma cama te esperar.
Quando chegares, quero te agarrar com avidez e força.
Quero te apertar com todas as forças de minhas mãos.
Só descansarei quando virsair o sangue quente do seu corpo.
Só assim, livrar-me-ei de ti,
pernilongo "filho da puta!"
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quinta-feira, 17 de setembro de 2009
FERNANDO PESSOA E DEUS
Comunicação às Jornadas Culturais / Literárias 2000 «Imagens de Deus na Literatura Portuguesa nos séc.XIX e XX» – Auditório da Escola Superior de Tecnologia e Gestão – Leiria, 15 e 16 de Março de 2001
por Amélia Pinto Pais
da Escola Secundária de Francisco Rodrigues Lobo, de Leiria
«Pertenço a uma geração que herdou a descrença na fé cristã e que criou em si uma descrença em todas as outras fés. Os nossos pais tinham ainda o impulso credor, que transferiam do cristianismo para outras formas de ilusão. Uns eram entusiastas da igualdade social, outros eram enamorados só da beleza, outros tinham a fé na ciência e nos seus proveitos, e havia outros que, mais cristãos ainda, iam buscar a Orientes e Ocidentes outras formas religiosas, com que entretivessem a consciência, sem elas oca, de meramente viver.
Tudo isso nós perdemos, de todas essas consolações nascemos órfãos. Cada civilização segue a linha íntima de uma religião que a representa: passar para outras religiões é perder essa, e por fim perdê-las a todas.
Nós perdemos essa, e às outras também.
Ficámos, pois, cada um entregue a si próprio, na desolação de se sentir viver. Um barco parece ser um objecto cujo fim é navegar; mas o seu fim não é navegar, senão chegar a um porto. Nós encontrámo-nos navegando, sem a ideia do porto a que nos deveríamos acolher. Reproduzimos assim, na espécie dolorosa, a fórmula aventureira dos argonautas: navegar é preciso, viver não é preciso.
Sem ilusões, vivemos apenas do sonho, que é a ilusão de quem não pode ter ilusões. Vivendo de nós próprios, diminuímo-nos, porque o homem completo é o homem que se ignora. Sem fé, não temos esperança, e sem esperança não temos propriamente vida. Não tendo uma ideia do futuro, também não temos uma ideia de hoje, porque o hoje, para o homem de acção, não é senão um prólogo do futuro. A energia para lutar nasceu morta connosco, porque nós nascemos sem o entusiasmo da luta.(....)
(...). O que vivemos foi em negação, em descontentamento e em desconsolo. Mas vivemo-lo de dentro, sem gestos, fechados sempre, pelo menos no género de vida, entre as quatro paredes do quarto e os quatro muros de não saber agir.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares.
(frag.195)
Ao aceitar abordar a questão religiosa em Fernando Pessoa, a pedido do meu amigo e colega Dr. António Gordo, da Comissão Científica destas Jornadas, não pude deixar de colocar-lhe e de me colocar algumas reservas e perplexidades face ao tema proposto.
É que, em primeiro lugar, e sem negar a importância que têm os conteúdos e linhas de sentido de um texto, o meu apreço pela obra de Pessoa se faz sobretudo do ponto de vista estritamente literário /poético e não do ponto de vista dos conteúdos ideológicos / filosóficos que encerra («Era eu um poeta estimulado pela filosofia e não um filósofo com faculdades poéticas», escrevia ele, por volta de 1910); por outro lado, sentia confusamente, do pouco de que me pudera aperceber até aí, que o problema de saber até que ponto Fernando Pessoa era um homem religioso, ele que se confessou uma vez, em 1935,em Nota Biográfica, «cristão gnóstico», ele que em tanto eus diferentes se projectara e se fizera poeticamente, ele que se quisera também um «indisciplinador de almas» — era tarefa algo ingente para o pouco tempo disponível que era o meu, tarefa mais adequada a uma tese de doutoramento em vários volumes e a preparar durante alguns anos.
Sentia também, e verifiquei-o posteriormente quando meti mãos à obra, que não era muita a bibliografia existente sobre esta complicada problemática. Assim:— como iria eu descobrir em tão pouco tempo o Pessoa nos vários Pessoa(s)? No Pessoa Caeiro, António Mora, Ricardo Reis, adeptos de teorias visando a reconstrução de um neo-paganismo de base helénica, mas também no Pessoa ortónimo de poemas simbolistas e quase místicos (alguns esotéricos e iniciáticos) e num Pessoa-Campos de poemas igualmente quase místicos como os Dois excertos de Odes, o Magnificat ou o «Afinal a melhor maneira de viajar é sentir»? E o Pessoa de Mensagem? – o do «Deus quer, o homem sonha, a obra nasce», o do misticismo nacionalista corporizado no mito (que «é o nada que é tudo») de D.Sebastião, o «Encoberto», adivinhado por Bandarra ou António Vieira, o da «divina loucura», sagrado, como o Infante Santo ou o Infante D.Henrique, por Deus, para ser portador do Sonho construtor de Quintos Impérios ainda não concretizados?
De um desafio se tratava, pois, para mim, o de tentar encontrar pelo menos esboço de resposta para tantas interrogações. É desse esboço de resposta que trago, hoje e aqui, as linhas principais e as muitas interrogações que, certamente no final, vos ficarão.
Vejam-no apenas como esboço, como uma introdução ao problema.
Vou seguir de perto o que pude aprender na pouca bibliografia específica existente e, principalmente, em António Quadros, Fernando Pessoa-Vida, personalidade e génio (ed. D.Quixote, Lisboa, 2ªed.,1984), em Dalila Pereira da Costa, O Esoterismo em Fernando Pessoa (ed.Lello & Irmão, Porto, 2ªed.,1978), em alguns capítulos de Teresa Rita Lopes in «Pessoa por conhecer»(Estampa, Lisboa, 1990) e nos estudos de Yvette Centeno, ligados igualmente às questões do esoterismo, hermetismo e iniciação na poesia de Pessoa.E também, naturalmente, da minha reflexão pessoal. E, principalmente ainda, na minha interrogação inacabada.
Algumas coordenadas para o conhecimento de Fernando Pessoa:
Fernando Pessoa foi baptizado e educado em criança dentro dos parâmetros da religião católica; existe um documento dele, datado de 1907 (tinha o poeta 19 anos), dirigido ao pároco da freguesia em que fora baptizado, em que contesta o facto de o terem baptizado quando «ainda ente irracional», obrigando-o «a fazer parte de uma associação demasiado humana com as teorias da qual o seu raciocínio mais viril talvez não queira concordar»; no mesmo documento considerava a igreja católica «poderosa e estúpida, sustentando a velha hipótese d’um Deus criador, eminentemente estúpido e eminentemente mau»
2..2. Em 1915, em carta dirigida em 6 de dezembro a Mário de Sá Carneiro, confessava- se em crise profunda, derivada de ter tido que traduzir várias obras de teosofia. Cito:
«Tive de traduzir livros teosóficos. Eu nada, absolutamente nada, conhecia do assunto. Agora, como é natural, conheço a essência do sistema. Abalou-me a um ponto que eu julgaria hoje impossível, tratando-se de qualquer sistema religioso. O carácter extraordinariamente vasto desta religião-filosofia; a noção de força, de domínio, de conhecimento superior e extrao-humano que ressumam as obras teosóficas, perturbaram-me muito. Cousa idêntica me acontecera há muito tempo com a leitura de um livro ingçês sobre Os Ritos e os Mistérios dos Rosa-Cruz. A possibilidade de que ali, na Teosofia, esteja a verdade real me "hante".(-...)
E mais adiante: « Ora, se V.meditar que a teosofia é um sistema ultra-cristão — no sentido de conter os princípios cristãos elevados a um ponto onde se fundem não sei em que além-Deus e pensar no que há de fundamentalmente incompatível com o meu paganismo essencial, V. terá o primeiro elemento grave que se acrescentou à minha crise. Se depois reparar em que a Teosofia, porque admite todas as religiões, tem um carácter inteiramente parecido com o do paganismo, que admite no seu panteão todos os deuses, V. terá o segundo elemento grave da minha crise de alma. A Teosofia apavora-me pelo seu mistério e pela sua grandeza ocultista, repugna-me pelo seu humanitarismo e apostolismo (...), atrai-me por se parecer tanto com um «paganismo transcendental (...) É o horror e a atracção do abismo realizados no além-alma...»
Convém esclarecer aqui que a teosofia, literalmente «sabedoria divina» ou «dos deuses» é uma teoria que se situa como síntese de filosofia, religião e ciência, apelando para a intuição e faculdades não racionais e declarando a identidade do Homem com a Realidade e o seu consequente poder de conhecer a Finalidade, a Meta, que se chama Deus.
Vários intelectuais europeus do tempo de Pessoa se deixaram tocar por esta teoria, reactivada sobretudo a partir da actividade de Helena Blavatsky, uma das fundadoras e principal expoente da Sociedade Teosófica em Nova Iorque, em 1875. Fernando Pessoa traduziu, entre outras obras teosóficas, A Voz do Silêncio, obra essencial de Blavatsky. No entanto, a teosofia vem de muito antes e, nomeadamente de Platão e Plotino, para não falar das diversas correntes místicas e do próprio idealismo alemão.
2.3. Também por essa altura, em célebre carta à tia Anica, confessa sentir-se com características de mediunidade e desenvolve práticas de espiritismo, reveladoras, juntamente com o interesse pela teosofia, pelos Rosa-Cruzes e o seu gosto e prática da numerologia e da astrologia, o seu pendor para o oculto, que viria a aprofundar-se nos anos finais da sua vida.
Em 1935, ou seja, no último ano da sua vida, confessa-se, na já referida Nota biográfica, no ponto Posição religiosa: «Cristão gnóstico, e portanto, inteiramente oposto a todas as igrejas organizadas, e sobretudo à Igreja de Roma. Fiel, por motivos que mais adiante estão implícitos, à Tradição Secreta do Cristianismo, que tem íntimas relações com a Tradição Secreta em Israel (a Santa Cabala) e com a essência oculta da Maçonaria» e «Iniciado, por comunicação directa de Mestre a Discípulo, nos três graus menores da (aparentemente extinta) Ordem Templária de Portugal»
Compreende-se a sua autodefinição como gnóstico, dado pretender ser a a gnose o conhecimento esotérico e perfeito da divindade, que se transmite por meio da tradição e mediante rituais de iniciação. Tal iniciação tê-la-á conseguido o poeta não pela sua integração na Maçonaria ou noutras associações secretas e ocultistas, mas pela reflexão e estudo e pela experiência poética , que, segundo Jung « aflora de regiões profundas da alma, salutares e benéficas, preexistentes à segregação das consciências individuais, e que, a partir desse regaço colectivo, seguiram os seus passos dolorosos. Brota dessas regiões onde todos os seres vibram ainda, em uníssono, e onde consequentemente a sensibilidade e a acção do indivíduo valem para toda a humanidade.»
Como última destas coordenadas, em carta do mesmo ano a Adolfo Casais Monteiro, diz-se não mação e opina sobre o Ocultismo, dizendo «não acreditar na comunicação directa com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, poderemos ir-nos comunicando com seres cada vez mais altos»; define também, na mesma carta, 3 caminhos para o Oculto, o mágico, o místico e o alquímico, considerando o último «o mais perfeito de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara».
Um conhecimento contemplativo de Deus:
Traçadas as coordenadas principais, a nível do pensamento religioso de Fernando
Pessoa, pondo, para já, de parte a longa teorização e defesa do Neopaganismo português, atentemos nalguns textos reveladores daquilo que podemos considerar ser o seu percurso poético /religioso, na busca do Conhecimento ou Gnose:
Por volta de 1912, tinha o poeta então 24 anos, e no mesmo ano em que publicava na «Águia» os seus primeiros artigos sobre a moderna poesia portuguesa, surge-nos um texto belíssimo intitulado «Prece» que passo a transcrever:
Prece:
«Senhor, que és o céu e a terra, e que és a vida e a morte! O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu! Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és tu também. Onde nada está tu habitas e onde tudo estás - (o teu templo) - eis o teu corpo.
Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome.
Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faz com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai.
[...]
Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.
Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.
Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim.» -
Este texto, em que António Quadros encontra, a meu ver com razão, ecos do Hino ao Sol do faraó monoteísta Akhenaton e afinidades com os cantos de S.Francisco de Assis, marca, segundo o mesmo autor, o «1ºmarco de uma longa e árdua peregrinação», revelando «toda uma vivência interior de transcendência que reúne a visão do ser humano, entre o animal e o espiritual».Nele é visível «uma enorme exigência de pureza e de Absoluto, um sentimento de adoração, a consciência profunda da vanidade egolátrica, um desejo de entrega e de abandono no divino», traduzindo, igualmente, «o efeito de uma experiência íntima, secreta.»
Pouco depois desta «Prece», em 1913, tinha então 25 anos, parece o Poeta ter tido uma primeira experiência de revelação, de êxtase quase místico, como afirma Quadros. Trata- - se do poema em 5 partes, Além-Deus. Na 1ªparte,
Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando —
O que é ser rio e correr?
O que é está-lo eu a ver?
Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco —
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo — e o mundo em seu redor —
Fica mais que exterior.
Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, ideia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus...
E súbito encontro Deus..
a realidade visível do Tejo e do olhar o Tejo some-se, abre-se para o invisível, o vácuo, como ele diz,«súbito», «de repente» , condição em que como numa aparição «súbito encontr(a) Deus». Todos podemos reconhecer nesta experiência relatada poeticamente ecos da «noite escura da alma» do poeta místico espanhol S.Juan de La Cruz...
Na 2ºparte de Além-Deus, o poeta procura explicar como tudo se passara: Passou (título da 2ªparte): «Passou, fora de Quando,/De Porquê, e de Passando...»; na 3ªparte, intitulada A Voz de Deus, reconhece na percepção do indizível, a fusão total do Eu e do universo a partir da audição da voz de Deus:
«Brilha uma voz na noute..
De dentro de Fora ouvi-a .
Ó Universo, eu sou-te..../»
E mais adiante:
«Cinza de ideia e de nome
Em mim, e a voz: Ó mundo,
Sermente em ti eu sou-me...
Mero eco de mim, me inundo
De ondas de negro lume
Em que pra Deus me afundo.»
Este inundar-se em Deus equivale à Queda (título do 4ºpoema da série)
«Da minha ideia do mundo
Caí...
Vácuo além de profundo,
Se ter Eu nem Ali.»
Tal queda/mergulho no inefável, no indizível é o encontro do Além-Deus.
«Além-Deus! Além Deus! Negra calma ..
Clarão de Desconhecido...
Tudo tem outro sentido, ó alma,
Mesmo o ter-um-sentido...»
O 5º e último poema, de título de ressonância esotérica ( e surrealista) – Braço sem corpo brandindo um Gládio – «é o regresso à realidade quotidiana, lugar da dúvida, da interrogação, do espanto, da incapacidade de aferir, pela razão humana, aquilo que por instantes envolveu o ser inteiro, deixando atrás de si um sentimento de irrealidade» — conclui assim o poema:
«Deus é um grande Intervalo,
Mas entre quê e quê?...
Entre o que digo e o que calo
Existo? Quem é que me vê?
Erro-me...»
Em 1914, nova série de poemas— Os Passos da Cruz (curiosa a imagística que é a mesma da Paixão de Cristo – atingir o saber, o conhecimento, será cumprir, como em qualquer ritual iniciático, os passos da cruz em subida a um qualquer Calvário? Será a queda necessária ao atingir do Graal, da revelação?)– a morte de «anima». Trata-se, como sabemos, de uma série de 14 sonetos, de que convém destacar os sonetos X —
Aconteceu-me do alto do infinito
Esta vida. Através de nevoeiros,
Do meu próprio ermo ser fumos primeiros,
Vim ganhando, e através estranhos ritos
De sombra e luz ocasional, e gritos
Vagos ao longe, e assomos passageiros
De saudade incógnita, luzeiros
De divino, este ser fosco e proscrito...
Caiu chuva em passados que fui eu.
Houve planícies de céu baixo e neve
Nalguma coisa de alma do que é meu.
Narrei-me a sombra e não me achei sentido
Hoje sei-me o deserto onde Deus teve
Outrora a sua capital de olvido...
os sonetos XI e XIII, em que o Poeta se vê como emissário, simples executor de algo que lhe é ditado (por quem? – por oculta mão? , por um rei desconhecido?) de reminiscências notoriamente neoplatónicas
XI
Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela
E oculta mão colora alguém em mim.
Pus a alma no nexo de perdê-la
E o meu princípio floresceu em Fim.
Que importa o tédio que dentro em mim gela,
E o leve Outono, e as galas, e o marfim,
E a congruência da alma que se vela
Com os sonhados pálios de cetim?
Disperso... E a hora como um leque fecha-se...
Minha alma é um arco tendo ao fundo o mar...
O tédio? A mágoa? A vida? O sonho? Deixa-
- se...
E, abrindo as asas sobre Renovar,
A erma sombra do voo começado
Pestaneja no campo abandonado...
XIII
Emissário de um rei desconhecido
Eu cumpro informes instruções de além,
E as bruscas frases que aos meus lábios vêm
Soam-me a um outro e anómalo sentido...
Inconscientemente me divido
Entre mim e a missão que o meu ser tem,
E a glória do meu Rei dá-me o desdém
Por este humano povo entre quem lido...
Não sei se existe o Rei que me mandou
Minha missão será eu a esquecer,
Meu orgulho o deserto em que em mim estou...
Mas há! Eu sinto-me altas tradições
De antes de tempo e espaço e vida e ser...
Já viram Deus as minhas sensações...
O último poema da série termina com «E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo»
Vejamos:
Como uma voz de fonte que cessasse
(E uns para os outros nossos vãos olhares
Se admiraram), para além dos meus palmares
De sonho, a voz que do meu tédio nasce
Parou... Apareceu já sem disfarce
De música longínqua, asas nos ares,
O mistério silente como os mares,
Quando morreu o vento e a calma pasce...
A paisagem longínqua só existe
Para haver nela um silêncio em descida
Para o mistério, silêncio a que a hora assiste...
E, perto ou longe, grande lago mudo,
O mundo, o informe mundo onde há a vida...
E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo...
Pessoa parece reconhecer em Deus a meta – em carta a Armando Cortes Rodrigues, datada de 19.1.1915, escrevia: «você é, como eu, fundamentalmente um espírito religioso» e mais adiante, referindo-se à solidão de sentir alguém que se «adiantou de mais aos companheiros de viagem » a viagem que, segundo diz, acha«tão grave» porque é uma viagem «entre almas e estrelas, pela Floresta dos Pavores...e Deus, fim da estrada infinita, à espera no silêncio da Sua grandeza...»
Podemos então talvez concluir como Quadros e Dalila Pereira da Costa, que entre 1912 e 1915 o Poeta, reconhecendo-se explicitamente como «espírito religioso» terá tido uma experiência de conhecimento contemplativo, quase de contacto místico, não racional, portanto, com o grande Intervalo, com Deus. Só bastante mais tarde, a partir de 1932, tal experiência viria a repetir-se, como veremos.
A busca da unidade perdida: o neopaganismo / Mestre Caeiro
Nos anos seguintes, foi a vez da uma busca de respostas outras ao problema: —
sou múltiplo, sou plural como o Universo.- Como reencontrar a Unidade perdida? Como ultrapassar o conflito /divisão entre o que sou e o que me sonho, entre o que sonho e o que faço, entre «a lealdade que devo /À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora/E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro»?
Penso que esta terá sido porventura a questão fundamental de Pessoa e dos seus «desassossegos» existenciais...
É este o período fecundo das tentativas neopagãs (e de toda a teoria do neopaganismo português – uma «Igreja» de que se fazem eco e «evangelistas» o filósofo António Mora, mas também Ricardo Reis e o próprio Pessoa).Nessa nova Igreja , Cristo é apenas mais um deus no panteão e como tal aceite por Reis; o que é intolerável é que os cristãos o afirmem como único; se a natureza é plural, como conceber um panteão que não o seja?. Cristo, a existir, será o Deus- Criança, a «Criança Nova», a «Criança eterna» do Poema VIII de O Guardador de Rebanhos de Caeiro (ele próprio, o Mestre, o que «não era pagão, era o paganismo», segundo o discípulo porventura mais amado e mais rebelde, Campos) – a criança surgida em sonho, fugida do Céu e das roupagens míticas de que o revestiram, e vindo morar na casa do Outeiro /«adormecendo» na alma do Poeta, não sem antes o ter ensinado a ver — e se ter comportado como criança:
«Esta é a história do meu Menino Jesus – conclui o poeta - Por que razão que se perceba/Não há-de ser ela mais verdadeira/Que tudo quanto os filósofos pensam /E tudo quanto as religiões ensinam?»
O mesmo Menino Jesus-Caeiro, que afirma não acreditar em Deus.«Não acredito em Deus porque nunca o vi./Se ele quisesse que eu acreditasse nele,/Sem dúvida que viria falar comigo /E entraria pela minha porta dentro /Dizendo-me, Aqui estou !
Uma religião, afinal, panteísta, a deste Mestre Caeiro, que parece recusar a visão do transcendente, mas absolutiza o real como se Deus fosse tão somente o real, as coisas da natureza. Um pouco como nas filosofias orientais, mas, ainda que o não parecendo, muito próxima da visão de S. Francisco no Cântico das Criaturas....Dando a sua resposta, afinal – a da sua completa a perfeita comunhão com o real, recusando conhecê-lo pelo pensamento (afinal: pensar é não compreender, pensar é estar doente dos olhos, pensar incomoda como andar à chuva...). Poderemos, ainda aqui, falar de misticismo de outro tipo – o misticismo panteísta de fusão com a natureza; por ele Sujeito e Objecto fundem-se e encontram a Unidade.
Mas Caeiro morreu cedo, como, de certo modo, inviável era «aprender a desaprender», recuperar a inocência da criança que vê tudo como se fosse pela primeira vez ou da ceifeira e da sua alegre inconsciência de não saber como a «ciência pesa tanto e a vida é tão breve!» e por isso «canta sem razão» — e com a sua morte prematura morreu também um pouco a teoria/igreja neopagã:
— Mora, o assumidamente filósofo, reduz-se ao silêncio;
— Reis assume o seu epicurismo triste, o «colhe o dia porque és ele», o «abdica e sê rei de ti próprio», tristemente, ou antes, desconsoladamente, dando conselhos, a meu ver pouco convictos, refugiando-se num cepticismo de escola («Assim talvez os deuses / Para si o não sejam, / E só de serem do que nós maiores / Tirem o serem deuses para nós // Seja qual for o certo, / Mesmo para com esses / Que cremos serem deuses, não sejamos / Inteiros numa fé talvez sem causa») ; digamos que ele é um «pagão triste da decadência», como a última imagem que quer conservar de Lídia, sua apaixonada virtual.
— Quanto a Pessoa, o ortónimo, aquele de quem Campos diz que «seria um pagão se não fosse um novelo embrulhado para o lado de dentro» atingirá, de certo modo, confundindo - se com Campos, na parte final da vida, o êxtase que entrevira em 1912 a 1915;
— Campos será sempre, e passada a fúria sensacionista do querer ser toda a gente e toda a parte, o mais desassossegado de todos, encontrando a paz e a verdade possíveis apenas no sonho de epopeias marítimas triunfais sem sair nunca do «cais deserto», imagem e sombra do Cais absoluto e arquetípico , de reminiscência ou anamnese platónica - atingirá, porém, e talvez em resposta ao seu desassossego e à sua busca, finalmente, e de novo, a alegria de encontrar Deus, ou em todo o caso, o Sagrado e a plenitude em textos como Magnificat e no Sursum Corda! de Afinal a melhor maneira de viajar é sentir...
Como diz Dalila Pereira da Costa, «o paganismo como idade da humanidade, forma e
visão do cosmos e apreensão do mundo, ser-lhe-ia revelado e dado a participar por directa experiência pessoal, em instantes que, abolindo milénios de afastamento, tal uma prodigiosa anamnese, o poeta consignou em Dois excertos de Odes, Passagem das Horas, Afinal a melhor maneira de viajar é sentir ... Aí, pela sua intuição poética, pelo seu dom de visionário, ele teria o poder, tal como Holderlin, de realizar uma ressurreição vivida dessa idade, em toda a sua verdadeira alma, e dela participar. Aí o cosmos surgir-lhe-ia em toda a sua antiga e eterna sacralidade.»
É esse, a seu ver, o verdadeiro sentido do neopaganismo de Pessoa.Com efeito, o sentido do mistério perpassa nesses poemas, onde é visível, como nos poemas orrtónimos «Silvos ou gnomos tocam?» ou «Passos tardam na relva», em que pequenos seres míticos são pressentidos.
« Caminhos para o oculto»:
Chegamos, neste ponto, ao tratamento daquilo que Quadros designa de caminhos
para o oculto. Segundo ele, Pessoa experimentou ou tentou, melhor dizendo, três caminhos de aproximação do Mistério, tantas vezes pressentido ou entrevisto. Seriam eles o caminho gnósico da percepção e visão supranormal, da imaginação, do sonho, da mediunidade, da reminiscência anamnésica platónica, da permeabilidade ao inconsciente colectivo ou arcaico, ou das iluminações , inspirações e contactos de ordem mística. A segunda via, segundo Quadros, seria ocaminho sófico – reflexão metafísica associada à cultura erudita; depois do clarividente, o pensador, o intelectual, o erudito, o que raciocina exaustivamente. Finalmente, a via ou caminho iniciático, presente em poemas esotéricos conhecidos como Na sombra do Monte Abiegno, Do Vale montanha`,A Múmia, Iniciação, Eros Psique, No túmulo de Christian Rossencreutz. Estes poemas têm sido exaustivamente analisados, quer por Dalila Pereira da Costa, quer por Yvette Centeno, e remeto para tais estudos aprofundados os meus queridos e pacientes ouvintes.
Na sombra do Monte Abiegno
Repousei de meditar.
Vi no alto o alto Castelo
Onde sonhei de chegar.
Mas repousei de pensar
Na sombra do Monte Abiegno.
Quando fora amor ou vida,
Atrás de mim o deixei,
Quando fora desejá-los,
Porque esqueci não lembrei.
À sombra do Monte Abiegno
Repousei porque abdiquei.
Talvez um dia, mais forte
Da força ou da abdicação,
Tentarei o alto caminho
Por onde ao Castelo vão.
Na sombra do Monte Abiegno
Por ora repouso, e não.
Quem pode sentir descanso
Com o Castelo a chamar?
Está no alto, sem caminho
Senão o que há por achar.
Na sombra do Monte Abiegno
Meu sonho é de o encontrar.
Mas por ora estou dormindo,
Porque é sono o não saber.
Olho o Castelo de longe,
Mas não olho o meu querer.
Da sombra do Monte Abiegno
Que me virá desprender?
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por casas, por prados,
Por quinta e por fonte,
Caminhais aliados.
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por penhascos pretos,
Atrás e defronte,
Caminhais secretos.
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por plainos desertos
Sem ter horizontes,
Caminhais libertos.
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por ínvios caminhos,
Por rios sem ponte,
Caminhais sozinhos.
Na sombra do Monte Abiegno: — o Monte Abiegno é a Montanha que une os planos terrestre e celeste, desafio ao homem que aspira pelo Absoluto. A imagem docavaleiro-monge, como a do Castelo, ambas de ressonâncias medievais, é a do cavaleiro solitário que busca «por ínvios caminhos» o seu Graal – a Verdade
Mais importante ainda é o conjunto de poemas A Múmia, também cronologicamente o primeiro destes poemas esotéricos. Segundo Yvette Centeno, assistimos nesta poesia cifrada «a um percurso espiritual, iniciático (em que se confirma a morte da alma) e a uma revelação. O poeta desce progressivamente dentro de si mesmo, separa-se de toda a realidade material e espiritual, fica reduzido à própria espinha, ao osso, à pura essência; e obtém no fim a revelação sobre a qual nada diz...»Tal percurso «é pontuado por uma absorção no Inconsciente, pela constatação da morte de Anima e pela depuração do Eu até à fixação na própria espinha, terminando de chofre com a enigmática substantivação «As espadas». As espadas equivaleria ao fogo dos filósofos, sendo também um atributo dos iniciados templários e rosa-cruzes, o que leva Centeno a interrogar-se: «Que concluir daqui? Que a revelação das espadas equivale à revelação simultânea, à «abertura, aqui» da porta do Entendimento e da beleza? Experiência que coroa a realização do homem, do poeta.»
A experiência alquímica visa, segundo Mirciade Eliade, «transmutar o homem; pela iniciação, o místico mudava de regime ontológico (fazia-se imortal). A transmutação, o opus magnum, que conduzia à pedra filosofal. obtém-se fazendo passar a matéria por 4 graus ou fases, entre as quais a nigredo e putrefactio, ou morte iniciática (....).»
Os poemas mais claramente iniciáticos de Pessoa são os já referidos «Iniciação», «No túmulo de Christian Rossencreutz» e ainda o de certo modo enigmático «Gomes Leal». Detenhamo-nos um pouco mais sobre o primeiro:
Iniciação
Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
......
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.
Vem a noite, que é a morte
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.
Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa.
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.
Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.
Por fim, na funda caverna,
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.
......
A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não estás morto, entre ciprestes.
......
Neófito, não há morte.
Só despindo-se, pela desnudação, o poeta encontra a verdadeira vida/unidade: por isso, «neófito, não há morte». Para o conseguir é preciso, porém atingir o fundo do poço, da caverna onde a verdadeira vida e a verdadeira verdade, passe a redundância, se encontram.
O corpo nada mais é que invólucro pesado e obstáculo de que é necessário despojar-se.
Como escreve Dalila Pereira da Costa:
«. Aqui o neófito renasce, depurado para outra vida, nessa caverna regeneradora, centro das forças do mundo e do eu, da energia primeira: sua matriz. Novo ciclo de existência se lhe abre: a dos deuses, «pois aí vês que são teus iguais». Aqui se termina a transmutação suprema, tal outra operação alquímica, que é a morte. Por esses estados sucessivos se ultrapassou, ou largou, a natureza humana e se adquiriu a natureza celeste, matéria última, incorruptível e eterna.
Iniciação poderá ser visto semelhantemente como uma purificação, numa alquimia do corpo humano. Por essa destruição, combustão de todos os elementos acidentais, exteriores, agarrados ao seu núcleo, central e incorruptível, fazer que este por fim, liberto e único, brilhe na caverna, a última etapa do trabalho interior: como a «matéria-prima». Nesse cadilho alquímico, ela será a obtenção final do diamante incorrupto, ou «Lapis Philosophorum». O ser primordial e eterno, o que um dia caiu do infinito, e que aqui sobre a terra, é o proscrito. Fechando assim agora o círculo, este poema, como «exitus», será o segundo e complementar movimento desse outro (como linha ascensional numa mesma onda), que surgiu na sua juventude, e em semelhante ambiente de mistério iniciático: os Passos da Cruz»
Da iniciação resulta também a desgraça, a tristeza e a solidão, como parece entrever- - se no poema Por que Ó Sagrado (datado de 1932):
Por que, ó Sagrado, sobre a minha vida
Derramaste o teu verbo?
Por que há- de a minha partida
A coroa de espinhos da verdade
Antes eu era sábio sem cuidados,
Ouvia a tarde finda, entrar o gado
E o campo era solene e primitivo
Hoje no meu ser sou o escravo
Só no meu ser tenho de a ter o travo,
Estou exilado aqui e morto vivo.
Maldito o dia em que pedi a ciência!
Mais maldito o que a deu, porque me a deste!
Que é feito dessa minha inconsciência
Que a consciência, como um traje, veste?
Hoje sei quase tudo e fiquei triste...
Sei a verdade, enfim, do Ser que existe,
Prouvera a Deus que eu não soubesse tanto!
O retomar da experiência de êxtase:
Novas experiências místicas vão surgir, no entanto, a partir desse mesmo ano – e o êxtase dos primeiros tempos, de Além - Deus, surge em Magnificat, de Álvaro de Campos:
MAGNIFICAT (7-11-1933)
Quando é que passará esta noite interna, o universo,
E eu, a minha alma, terei o meu dia?
Quando é que despertarei de estar acordado?
Não sei. O sol brilha alto,
Impossível de fitar.
As estrelas pestanejam frio,
Impossíveis de contar.
O coração pulsa alheio,
Impossível de escutar.
Quando é que passará este drama sem teatro,
Ou este teatro sem drama,
E recolherei a casa?
Onde? Como? Quando?
Gato que me fitas com olhos de vida, quem tens lá no fundo?
É esse! É esse!
Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;
E então será dia.
Sorri, dormindo, minha alma!
Sorri, minha alma, será dia!
Trata-se, na opinião de Quadros, de «um cântico de assunção e êxtase», «momento de apaziguamento – consolado, repousado, gratificado. Porque, contemplado em êxtase, Esse lho terá concedido.» .
Confirma-se, assim, a opinião já referida de Dalila Pereira da Costa de que:
«Deus em Pessoa não é um conceito, uma noção teórica nem um ideal abstracto. Sua ideia de deus não é racional. Ele é uma realidade conhecida por experiência directa. Uma realidade eminentemente viva, como o Deus vivo da Bíblia, o mesmo que todos os grandes espirituais conheceram.(...) Não procuremos tão pouco no seu pensamento um Deus de feição moral. O seu deus é o dos contemplativos, conhecido e revelado no amor e na liberdade. A salvação aqui não é dada através dos méritos e das obras próprias, mas pela união sagrada com Deus. É nela que estará o homem justificado.»
Vemo-lo também lendo, em vésperas de Natal de 1934, e ainda com Álvaro de Campos, a 1ª Epístola aos Coríntios:
Ali não havia electricidade.
Por isso foi à luz de uma vela,mortiça
Que li, inserto na cama,
O que estava à mão para ler —
A Bíblia, em português (coisa curiosa), feita para protestantes.
E reli a «Primeira Epístola aos Coríntios».
Em torno de mim o sossego excessivo de noite de província
Fazia um grande barulho ao contrário,
Dava-me uma tendência do choro para a desolação.
A «Primeira Epístola aos Coríntios»...
Relia-a à luz de uma vela subitamente antiquíssima,
E um grande mar de emoção ouvia-se dentro de mim...
Sou nada...
Sou uma ficção...
Que ando eu a querer de mim ou de tudo neste mundo?
«Se eu não tivesse a caridade.»
E a soberana luz manda, e do alto dos séculos,
A grande mensagem com que a alma é livre...
«Se eu não tivesse a caridade..»
Meu Deus, e eu que não tenho a caridade!---
Em Magnificat reencontra-se Campos / Pessoa consigo mesmo, com a Unidade. Tal unidade, conseguida pelo contacto directo com o Absoluto, é também, no entender de Quadros e nosso, prosseguida e conseguida no poema «A melhor maneira de viajar é sentir».
Nele se afirma:
Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas
Quantas mais personalidades eu tiver
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir como todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a essência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,
Porque, seja ele quem for, com certeza que é tudo,
E fora d’ Ele há só Ele, e tudo para Ele é pouco...
E mais adiante:
Cada alma é uma escada para Deus
Cada alma é um corredor-Universo para Deus,
Cada alma é um rio correndo para as margens do Externo
Para Deus e em Deus com um sussurro soturno.
— E, se assim é, o convite:— Sursum corda!
Sursum corda! Erguei as almas!
Todo o Mistério é Espirito (...)
O Poeta, cuja alma é corredor - Universo para Deus explode em cânticos de louvor –
«reparo para ti e sou todo um hino!»
e pede:
Ocupa de toda a tua força e de todo o teu poder quente
Meu coração a ti aberto!
Como uma espada trespassando meu ser erguido e extático,
Intersecciona com meu sangue, com a minha pele e os meus nervos,
Teu movimento contínuo, contíguo a ti próprio sempre.
É que, afirma:
Sou uma chama ascendendo, mas ascendo para baixo e para cima,
Ascendo para todos os lados e ao mesmo tempo, sou um globo
de chamas explosivas buscando Deus e queimando
A crosta dos meus sentidos, o número da minha lógica
A minha inteligência limitadora e gelada.
E o poema prossegue: — Oferece-se como dinamismo poderoso, tendo integrado em si «todos os movimentos que compõem o universo, a fúria minuciosa e dos átomos, a fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos, a espuma furiosa de todos os rios» e dizendo:
«Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio
De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh’alma»
O poema termina, com o poeta dirigindo-se a essa força cósmica (Deus?) dizendo:
«Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode (...)
Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida, (...)
Sobrevive-me, em minha vida, em todas as direcções!»
As questões que ficam:
E aqui está, como neste sensacionismo assumido se retoma e se esclarece, ganhando
nova luz, o «Já viram Deus as minhas sensações». de Passos da Cruz.
Concluiríamos assim que também (ou sobretudo?) a sensação é força propulsora da caminhada do cavaleiro-monge em direcção ao Monte Abiegno ou a Deus, a Grande Ogiva?
Que Caeiro – o sensacionista dos sensacionistas, o porventura talvez mais whitmaniano (indo para além do próprio Whitman, de resto) – seria também uma via para Deus, para o Absoluto, para a fundamental unidade?
São perguntas que ficam. Eu nada sei – ou quase nada. Apenas me interrogo – e interrogo; como Pessoa me sinto – ou gostaria de me sentir e ser – indisciplinadora de almas, levando-as a interrogarem-se.
Em todo o caso, e como esboço de uma conclusão, sempre provisória, reforço, parece-- me poder concordar com a opinião expressa por Murillo Nunes de Azevedo, um teósofo brasileiro, em texto intitulado: Fernando Pessoa Teósofo:
«Fernando Pessoa é, por excelência, o poeta do transcendentalismo. Sua poesia pode ser igualada à de Wiliam Blake. É densa, atingindo zonas do inconsciente, só reveladas aos místicos, aos profetas »
O mesmo autor aproxima a criação dos heterónimos da teosofia:
«Ao criar, do modo como o definiu, quase em êxtase, os heterónimos, o poeta mergulhava cada vez mais nas raízes do próprio Ser. Recebia então a comunicação directa das camadas profundas do inconsciente colectivo comum a todos os homens (...)A intuição é a visão directa da realidade, sem intermediários.»
Talvez «isto» que agora vos li seja tão só um muito pequeno e tímido começo para uma reflexão mais pessoal e mais profunda. Minha e de todos vós. Com a certeza de que são bastante ínvios os caminhos para captar o Pessoa detrás de todos os fingimentos e de todos os Pessoa (s).
Peço desculpa pela extensão do meu texto – era, porém, difícil fazê-lo mais breve.
É que só é capaz de ser sintético quem domina muitíssimo bem e vê claramente um problema. O que não é, decididamente, e por enquanto, o meu caso.
Para além de tudo o mais, dizia Camões, dirigindo-se à Canção: «E se acaso / te culparem de larga e de pesada, «Não pode ser – lhe dize - limitada / a água do mar em tão pequeno vaso »...
Termino como comecei, com referência ao homem de todos os desassossegos, Bernardo Soares, relembrando as suas palavras desconsoladas:
«Pertenço a uma geração que herdou a descrença na fé cristã e que criou em si uma descrença em todas as outras fés. Os nossos pais tinham ainda o impulso credor, que transferiam do cristianismo para outras formas de ilusão. Uns eram entusiastas da igualdade social, outros eram enamorados só da beleza, outros tinham a fé na ciência e nos seus proveitos, e havia outros que, mais cristãos ainda iam buscar a Orientes e Ocidentes outras formas religiosas, com que entretivessem a consciência, sem elas oca, de meramente viver.
Tudo isso nós perdemos, de todas essas consolações nascemos órfãos. »
Leiria, Fevereiro e Março de 2001
Amélia Pinto Pai
Comunicação às Jornadas Culturais / Literárias 2000 «Imagens de Deus na Literatura Portuguesa nos séc.XIX e XX» – Auditório da Escola Superior de Tecnologia e Gestão – Leiria, 15 e 16 de Março de 2001
por Amélia Pinto Pais,
da Escola Secundária de Francisco Rodrigues Lobo, de Leiria
por Amélia Pinto Pais
da Escola Secundária de Francisco Rodrigues Lobo, de Leiria
«Pertenço a uma geração que herdou a descrença na fé cristã e que criou em si uma descrença em todas as outras fés. Os nossos pais tinham ainda o impulso credor, que transferiam do cristianismo para outras formas de ilusão. Uns eram entusiastas da igualdade social, outros eram enamorados só da beleza, outros tinham a fé na ciência e nos seus proveitos, e havia outros que, mais cristãos ainda, iam buscar a Orientes e Ocidentes outras formas religiosas, com que entretivessem a consciência, sem elas oca, de meramente viver.
Tudo isso nós perdemos, de todas essas consolações nascemos órfãos. Cada civilização segue a linha íntima de uma religião que a representa: passar para outras religiões é perder essa, e por fim perdê-las a todas.
Nós perdemos essa, e às outras também.
Ficámos, pois, cada um entregue a si próprio, na desolação de se sentir viver. Um barco parece ser um objecto cujo fim é navegar; mas o seu fim não é navegar, senão chegar a um porto. Nós encontrámo-nos navegando, sem a ideia do porto a que nos deveríamos acolher. Reproduzimos assim, na espécie dolorosa, a fórmula aventureira dos argonautas: navegar é preciso, viver não é preciso.
Sem ilusões, vivemos apenas do sonho, que é a ilusão de quem não pode ter ilusões. Vivendo de nós próprios, diminuímo-nos, porque o homem completo é o homem que se ignora. Sem fé, não temos esperança, e sem esperança não temos propriamente vida. Não tendo uma ideia do futuro, também não temos uma ideia de hoje, porque o hoje, para o homem de acção, não é senão um prólogo do futuro. A energia para lutar nasceu morta connosco, porque nós nascemos sem o entusiasmo da luta.(....)
(...). O que vivemos foi em negação, em descontentamento e em desconsolo. Mas vivemo-lo de dentro, sem gestos, fechados sempre, pelo menos no género de vida, entre as quatro paredes do quarto e os quatro muros de não saber agir.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares.
(frag.195)
Ao aceitar abordar a questão religiosa em Fernando Pessoa, a pedido do meu amigo e colega Dr. António Gordo, da Comissão Científica destas Jornadas, não pude deixar de colocar-lhe e de me colocar algumas reservas e perplexidades face ao tema proposto.
É que, em primeiro lugar, e sem negar a importância que têm os conteúdos e linhas de sentido de um texto, o meu apreço pela obra de Pessoa se faz sobretudo do ponto de vista estritamente literário /poético e não do ponto de vista dos conteúdos ideológicos / filosóficos que encerra («Era eu um poeta estimulado pela filosofia e não um filósofo com faculdades poéticas», escrevia ele, por volta de 1910); por outro lado, sentia confusamente, do pouco de que me pudera aperceber até aí, que o problema de saber até que ponto Fernando Pessoa era um homem religioso, ele que se confessou uma vez, em 1935,em Nota Biográfica, «cristão gnóstico», ele que em tanto eus diferentes se projectara e se fizera poeticamente, ele que se quisera também um «indisciplinador de almas» — era tarefa algo ingente para o pouco tempo disponível que era o meu, tarefa mais adequada a uma tese de doutoramento em vários volumes e a preparar durante alguns anos.
Sentia também, e verifiquei-o posteriormente quando meti mãos à obra, que não era muita a bibliografia existente sobre esta complicada problemática. Assim:— como iria eu descobrir em tão pouco tempo o Pessoa nos vários Pessoa(s)? No Pessoa Caeiro, António Mora, Ricardo Reis, adeptos de teorias visando a reconstrução de um neo-paganismo de base helénica, mas também no Pessoa ortónimo de poemas simbolistas e quase místicos (alguns esotéricos e iniciáticos) e num Pessoa-Campos de poemas igualmente quase místicos como os Dois excertos de Odes, o Magnificat ou o «Afinal a melhor maneira de viajar é sentir»? E o Pessoa de Mensagem? – o do «Deus quer, o homem sonha, a obra nasce», o do misticismo nacionalista corporizado no mito (que «é o nada que é tudo») de D.Sebastião, o «Encoberto», adivinhado por Bandarra ou António Vieira, o da «divina loucura», sagrado, como o Infante Santo ou o Infante D.Henrique, por Deus, para ser portador do Sonho construtor de Quintos Impérios ainda não concretizados?
De um desafio se tratava, pois, para mim, o de tentar encontrar pelo menos esboço de resposta para tantas interrogações. É desse esboço de resposta que trago, hoje e aqui, as linhas principais e as muitas interrogações que, certamente no final, vos ficarão.
Vejam-no apenas como esboço, como uma introdução ao problema.
Vou seguir de perto o que pude aprender na pouca bibliografia específica existente e, principalmente, em António Quadros, Fernando Pessoa-Vida, personalidade e génio (ed. D.Quixote, Lisboa, 2ªed.,1984), em Dalila Pereira da Costa, O Esoterismo em Fernando Pessoa (ed.Lello & Irmão, Porto, 2ªed.,1978), em alguns capítulos de Teresa Rita Lopes in «Pessoa por conhecer»(Estampa, Lisboa, 1990) e nos estudos de Yvette Centeno, ligados igualmente às questões do esoterismo, hermetismo e iniciação na poesia de Pessoa.E também, naturalmente, da minha reflexão pessoal. E, principalmente ainda, na minha interrogação inacabada.
Algumas coordenadas para o conhecimento de Fernando Pessoa:
Fernando Pessoa foi baptizado e educado em criança dentro dos parâmetros da religião católica; existe um documento dele, datado de 1907 (tinha o poeta 19 anos), dirigido ao pároco da freguesia em que fora baptizado, em que contesta o facto de o terem baptizado quando «ainda ente irracional», obrigando-o «a fazer parte de uma associação demasiado humana com as teorias da qual o seu raciocínio mais viril talvez não queira concordar»; no mesmo documento considerava a igreja católica «poderosa e estúpida, sustentando a velha hipótese d’um Deus criador, eminentemente estúpido e eminentemente mau»
2..2. Em 1915, em carta dirigida em 6 de dezembro a Mário de Sá Carneiro, confessava- se em crise profunda, derivada de ter tido que traduzir várias obras de teosofia. Cito:
«Tive de traduzir livros teosóficos. Eu nada, absolutamente nada, conhecia do assunto. Agora, como é natural, conheço a essência do sistema. Abalou-me a um ponto que eu julgaria hoje impossível, tratando-se de qualquer sistema religioso. O carácter extraordinariamente vasto desta religião-filosofia; a noção de força, de domínio, de conhecimento superior e extrao-humano que ressumam as obras teosóficas, perturbaram-me muito. Cousa idêntica me acontecera há muito tempo com a leitura de um livro ingçês sobre Os Ritos e os Mistérios dos Rosa-Cruz. A possibilidade de que ali, na Teosofia, esteja a verdade real me "hante".(-...)
E mais adiante: « Ora, se V.meditar que a teosofia é um sistema ultra-cristão — no sentido de conter os princípios cristãos elevados a um ponto onde se fundem não sei em que além-Deus e pensar no que há de fundamentalmente incompatível com o meu paganismo essencial, V. terá o primeiro elemento grave que se acrescentou à minha crise. Se depois reparar em que a Teosofia, porque admite todas as religiões, tem um carácter inteiramente parecido com o do paganismo, que admite no seu panteão todos os deuses, V. terá o segundo elemento grave da minha crise de alma. A Teosofia apavora-me pelo seu mistério e pela sua grandeza ocultista, repugna-me pelo seu humanitarismo e apostolismo (...), atrai-me por se parecer tanto com um «paganismo transcendental (...) É o horror e a atracção do abismo realizados no além-alma...»
Convém esclarecer aqui que a teosofia, literalmente «sabedoria divina» ou «dos deuses» é uma teoria que se situa como síntese de filosofia, religião e ciência, apelando para a intuição e faculdades não racionais e declarando a identidade do Homem com a Realidade e o seu consequente poder de conhecer a Finalidade, a Meta, que se chama Deus.
Vários intelectuais europeus do tempo de Pessoa se deixaram tocar por esta teoria, reactivada sobretudo a partir da actividade de Helena Blavatsky, uma das fundadoras e principal expoente da Sociedade Teosófica em Nova Iorque, em 1875. Fernando Pessoa traduziu, entre outras obras teosóficas, A Voz do Silêncio, obra essencial de Blavatsky. No entanto, a teosofia vem de muito antes e, nomeadamente de Platão e Plotino, para não falar das diversas correntes místicas e do próprio idealismo alemão.
2.3. Também por essa altura, em célebre carta à tia Anica, confessa sentir-se com características de mediunidade e desenvolve práticas de espiritismo, reveladoras, juntamente com o interesse pela teosofia, pelos Rosa-Cruzes e o seu gosto e prática da numerologia e da astrologia, o seu pendor para o oculto, que viria a aprofundar-se nos anos finais da sua vida.
Em 1935, ou seja, no último ano da sua vida, confessa-se, na já referida Nota biográfica, no ponto Posição religiosa: «Cristão gnóstico, e portanto, inteiramente oposto a todas as igrejas organizadas, e sobretudo à Igreja de Roma. Fiel, por motivos que mais adiante estão implícitos, à Tradição Secreta do Cristianismo, que tem íntimas relações com a Tradição Secreta em Israel (a Santa Cabala) e com a essência oculta da Maçonaria» e «Iniciado, por comunicação directa de Mestre a Discípulo, nos três graus menores da (aparentemente extinta) Ordem Templária de Portugal»
Compreende-se a sua autodefinição como gnóstico, dado pretender ser a a gnose o conhecimento esotérico e perfeito da divindade, que se transmite por meio da tradição e mediante rituais de iniciação. Tal iniciação tê-la-á conseguido o poeta não pela sua integração na Maçonaria ou noutras associações secretas e ocultistas, mas pela reflexão e estudo e pela experiência poética , que, segundo Jung « aflora de regiões profundas da alma, salutares e benéficas, preexistentes à segregação das consciências individuais, e que, a partir desse regaço colectivo, seguiram os seus passos dolorosos. Brota dessas regiões onde todos os seres vibram ainda, em uníssono, e onde consequentemente a sensibilidade e a acção do indivíduo valem para toda a humanidade.»
Como última destas coordenadas, em carta do mesmo ano a Adolfo Casais Monteiro, diz-se não mação e opina sobre o Ocultismo, dizendo «não acreditar na comunicação directa com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, poderemos ir-nos comunicando com seres cada vez mais altos»; define também, na mesma carta, 3 caminhos para o Oculto, o mágico, o místico e o alquímico, considerando o último «o mais perfeito de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara».
Um conhecimento contemplativo de Deus:
Traçadas as coordenadas principais, a nível do pensamento religioso de Fernando
Pessoa, pondo, para já, de parte a longa teorização e defesa do Neopaganismo português, atentemos nalguns textos reveladores daquilo que podemos considerar ser o seu percurso poético /religioso, na busca do Conhecimento ou Gnose:
Por volta de 1912, tinha o poeta então 24 anos, e no mesmo ano em que publicava na «Águia» os seus primeiros artigos sobre a moderna poesia portuguesa, surge-nos um texto belíssimo intitulado «Prece» que passo a transcrever:
Prece:
«Senhor, que és o céu e a terra, e que és a vida e a morte! O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu! Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és tu também. Onde nada está tu habitas e onde tudo estás - (o teu templo) - eis o teu corpo.
Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome.
Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faz com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai.
[...]
Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.
Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.
Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim.» -
Este texto, em que António Quadros encontra, a meu ver com razão, ecos do Hino ao Sol do faraó monoteísta Akhenaton e afinidades com os cantos de S.Francisco de Assis, marca, segundo o mesmo autor, o «1ºmarco de uma longa e árdua peregrinação», revelando «toda uma vivência interior de transcendência que reúne a visão do ser humano, entre o animal e o espiritual».Nele é visível «uma enorme exigência de pureza e de Absoluto, um sentimento de adoração, a consciência profunda da vanidade egolátrica, um desejo de entrega e de abandono no divino», traduzindo, igualmente, «o efeito de uma experiência íntima, secreta.»
Pouco depois desta «Prece», em 1913, tinha então 25 anos, parece o Poeta ter tido uma primeira experiência de revelação, de êxtase quase místico, como afirma Quadros. Trata- - se do poema em 5 partes, Além-Deus. Na 1ªparte,
Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando —
O que é ser rio e correr?
O que é está-lo eu a ver?
Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco —
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo — e o mundo em seu redor —
Fica mais que exterior.
Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, ideia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus...
E súbito encontro Deus..
a realidade visível do Tejo e do olhar o Tejo some-se, abre-se para o invisível, o vácuo, como ele diz,«súbito», «de repente» , condição em que como numa aparição «súbito encontr(a) Deus». Todos podemos reconhecer nesta experiência relatada poeticamente ecos da «noite escura da alma» do poeta místico espanhol S.Juan de La Cruz...
Na 2ºparte de Além-Deus, o poeta procura explicar como tudo se passara: Passou (título da 2ªparte): «Passou, fora de Quando,/De Porquê, e de Passando...»; na 3ªparte, intitulada A Voz de Deus, reconhece na percepção do indizível, a fusão total do Eu e do universo a partir da audição da voz de Deus:
«Brilha uma voz na noute..
De dentro de Fora ouvi-a .
Ó Universo, eu sou-te..../»
E mais adiante:
«Cinza de ideia e de nome
Em mim, e a voz: Ó mundo,
Sermente em ti eu sou-me...
Mero eco de mim, me inundo
De ondas de negro lume
Em que pra Deus me afundo.»
Este inundar-se em Deus equivale à Queda (título do 4ºpoema da série)
«Da minha ideia do mundo
Caí...
Vácuo além de profundo,
Se ter Eu nem Ali.»
Tal queda/mergulho no inefável, no indizível é o encontro do Além-Deus.
«Além-Deus! Além Deus! Negra calma ..
Clarão de Desconhecido...
Tudo tem outro sentido, ó alma,
Mesmo o ter-um-sentido...»
O 5º e último poema, de título de ressonância esotérica ( e surrealista) – Braço sem corpo brandindo um Gládio – «é o regresso à realidade quotidiana, lugar da dúvida, da interrogação, do espanto, da incapacidade de aferir, pela razão humana, aquilo que por instantes envolveu o ser inteiro, deixando atrás de si um sentimento de irrealidade» — conclui assim o poema:
«Deus é um grande Intervalo,
Mas entre quê e quê?...
Entre o que digo e o que calo
Existo? Quem é que me vê?
Erro-me...»
Em 1914, nova série de poemas— Os Passos da Cruz (curiosa a imagística que é a mesma da Paixão de Cristo – atingir o saber, o conhecimento, será cumprir, como em qualquer ritual iniciático, os passos da cruz em subida a um qualquer Calvário? Será a queda necessária ao atingir do Graal, da revelação?)– a morte de «anima». Trata-se, como sabemos, de uma série de 14 sonetos, de que convém destacar os sonetos X —
Aconteceu-me do alto do infinito
Esta vida. Através de nevoeiros,
Do meu próprio ermo ser fumos primeiros,
Vim ganhando, e através estranhos ritos
De sombra e luz ocasional, e gritos
Vagos ao longe, e assomos passageiros
De saudade incógnita, luzeiros
De divino, este ser fosco e proscrito...
Caiu chuva em passados que fui eu.
Houve planícies de céu baixo e neve
Nalguma coisa de alma do que é meu.
Narrei-me a sombra e não me achei sentido
Hoje sei-me o deserto onde Deus teve
Outrora a sua capital de olvido...
os sonetos XI e XIII, em que o Poeta se vê como emissário, simples executor de algo que lhe é ditado (por quem? – por oculta mão? , por um rei desconhecido?) de reminiscências notoriamente neoplatónicas
XI
Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela
E oculta mão colora alguém em mim.
Pus a alma no nexo de perdê-la
E o meu princípio floresceu em Fim.
Que importa o tédio que dentro em mim gela,
E o leve Outono, e as galas, e o marfim,
E a congruência da alma que se vela
Com os sonhados pálios de cetim?
Disperso... E a hora como um leque fecha-se...
Minha alma é um arco tendo ao fundo o mar...
O tédio? A mágoa? A vida? O sonho? Deixa-
- se...
E, abrindo as asas sobre Renovar,
A erma sombra do voo começado
Pestaneja no campo abandonado...
XIII
Emissário de um rei desconhecido
Eu cumpro informes instruções de além,
E as bruscas frases que aos meus lábios vêm
Soam-me a um outro e anómalo sentido...
Inconscientemente me divido
Entre mim e a missão que o meu ser tem,
E a glória do meu Rei dá-me o desdém
Por este humano povo entre quem lido...
Não sei se existe o Rei que me mandou
Minha missão será eu a esquecer,
Meu orgulho o deserto em que em mim estou...
Mas há! Eu sinto-me altas tradições
De antes de tempo e espaço e vida e ser...
Já viram Deus as minhas sensações...
O último poema da série termina com «E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo»
Vejamos:
Como uma voz de fonte que cessasse
(E uns para os outros nossos vãos olhares
Se admiraram), para além dos meus palmares
De sonho, a voz que do meu tédio nasce
Parou... Apareceu já sem disfarce
De música longínqua, asas nos ares,
O mistério silente como os mares,
Quando morreu o vento e a calma pasce...
A paisagem longínqua só existe
Para haver nela um silêncio em descida
Para o mistério, silêncio a que a hora assiste...
E, perto ou longe, grande lago mudo,
O mundo, o informe mundo onde há a vida...
E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo...
Pessoa parece reconhecer em Deus a meta – em carta a Armando Cortes Rodrigues, datada de 19.1.1915, escrevia: «você é, como eu, fundamentalmente um espírito religioso» e mais adiante, referindo-se à solidão de sentir alguém que se «adiantou de mais aos companheiros de viagem » a viagem que, segundo diz, acha«tão grave» porque é uma viagem «entre almas e estrelas, pela Floresta dos Pavores...e Deus, fim da estrada infinita, à espera no silêncio da Sua grandeza...»
Podemos então talvez concluir como Quadros e Dalila Pereira da Costa, que entre 1912 e 1915 o Poeta, reconhecendo-se explicitamente como «espírito religioso» terá tido uma experiência de conhecimento contemplativo, quase de contacto místico, não racional, portanto, com o grande Intervalo, com Deus. Só bastante mais tarde, a partir de 1932, tal experiência viria a repetir-se, como veremos.
A busca da unidade perdida: o neopaganismo / Mestre Caeiro
Nos anos seguintes, foi a vez da uma busca de respostas outras ao problema: —
sou múltiplo, sou plural como o Universo.- Como reencontrar a Unidade perdida? Como ultrapassar o conflito /divisão entre o que sou e o que me sonho, entre o que sonho e o que faço, entre «a lealdade que devo /À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora/E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro»?
Penso que esta terá sido porventura a questão fundamental de Pessoa e dos seus «desassossegos» existenciais...
É este o período fecundo das tentativas neopagãs (e de toda a teoria do neopaganismo português – uma «Igreja» de que se fazem eco e «evangelistas» o filósofo António Mora, mas também Ricardo Reis e o próprio Pessoa).Nessa nova Igreja , Cristo é apenas mais um deus no panteão e como tal aceite por Reis; o que é intolerável é que os cristãos o afirmem como único; se a natureza é plural, como conceber um panteão que não o seja?. Cristo, a existir, será o Deus- Criança, a «Criança Nova», a «Criança eterna» do Poema VIII de O Guardador de Rebanhos de Caeiro (ele próprio, o Mestre, o que «não era pagão, era o paganismo», segundo o discípulo porventura mais amado e mais rebelde, Campos) – a criança surgida em sonho, fugida do Céu e das roupagens míticas de que o revestiram, e vindo morar na casa do Outeiro /«adormecendo» na alma do Poeta, não sem antes o ter ensinado a ver — e se ter comportado como criança:
«Esta é a história do meu Menino Jesus – conclui o poeta - Por que razão que se perceba/Não há-de ser ela mais verdadeira/Que tudo quanto os filósofos pensam /E tudo quanto as religiões ensinam?»
O mesmo Menino Jesus-Caeiro, que afirma não acreditar em Deus.«Não acredito em Deus porque nunca o vi./Se ele quisesse que eu acreditasse nele,/Sem dúvida que viria falar comigo /E entraria pela minha porta dentro /Dizendo-me, Aqui estou !
Uma religião, afinal, panteísta, a deste Mestre Caeiro, que parece recusar a visão do transcendente, mas absolutiza o real como se Deus fosse tão somente o real, as coisas da natureza. Um pouco como nas filosofias orientais, mas, ainda que o não parecendo, muito próxima da visão de S. Francisco no Cântico das Criaturas....Dando a sua resposta, afinal – a da sua completa a perfeita comunhão com o real, recusando conhecê-lo pelo pensamento (afinal: pensar é não compreender, pensar é estar doente dos olhos, pensar incomoda como andar à chuva...). Poderemos, ainda aqui, falar de misticismo de outro tipo – o misticismo panteísta de fusão com a natureza; por ele Sujeito e Objecto fundem-se e encontram a Unidade.
Mas Caeiro morreu cedo, como, de certo modo, inviável era «aprender a desaprender», recuperar a inocência da criança que vê tudo como se fosse pela primeira vez ou da ceifeira e da sua alegre inconsciência de não saber como a «ciência pesa tanto e a vida é tão breve!» e por isso «canta sem razão» — e com a sua morte prematura morreu também um pouco a teoria/igreja neopagã:
— Mora, o assumidamente filósofo, reduz-se ao silêncio;
— Reis assume o seu epicurismo triste, o «colhe o dia porque és ele», o «abdica e sê rei de ti próprio», tristemente, ou antes, desconsoladamente, dando conselhos, a meu ver pouco convictos, refugiando-se num cepticismo de escola («Assim talvez os deuses / Para si o não sejam, / E só de serem do que nós maiores / Tirem o serem deuses para nós // Seja qual for o certo, / Mesmo para com esses / Que cremos serem deuses, não sejamos / Inteiros numa fé talvez sem causa») ; digamos que ele é um «pagão triste da decadência», como a última imagem que quer conservar de Lídia, sua apaixonada virtual.
— Quanto a Pessoa, o ortónimo, aquele de quem Campos diz que «seria um pagão se não fosse um novelo embrulhado para o lado de dentro» atingirá, de certo modo, confundindo - se com Campos, na parte final da vida, o êxtase que entrevira em 1912 a 1915;
— Campos será sempre, e passada a fúria sensacionista do querer ser toda a gente e toda a parte, o mais desassossegado de todos, encontrando a paz e a verdade possíveis apenas no sonho de epopeias marítimas triunfais sem sair nunca do «cais deserto», imagem e sombra do Cais absoluto e arquetípico , de reminiscência ou anamnese platónica - atingirá, porém, e talvez em resposta ao seu desassossego e à sua busca, finalmente, e de novo, a alegria de encontrar Deus, ou em todo o caso, o Sagrado e a plenitude em textos como Magnificat e no Sursum Corda! de Afinal a melhor maneira de viajar é sentir...
Como diz Dalila Pereira da Costa, «o paganismo como idade da humanidade, forma e
visão do cosmos e apreensão do mundo, ser-lhe-ia revelado e dado a participar por directa experiência pessoal, em instantes que, abolindo milénios de afastamento, tal uma prodigiosa anamnese, o poeta consignou em Dois excertos de Odes, Passagem das Horas, Afinal a melhor maneira de viajar é sentir ... Aí, pela sua intuição poética, pelo seu dom de visionário, ele teria o poder, tal como Holderlin, de realizar uma ressurreição vivida dessa idade, em toda a sua verdadeira alma, e dela participar. Aí o cosmos surgir-lhe-ia em toda a sua antiga e eterna sacralidade.»
É esse, a seu ver, o verdadeiro sentido do neopaganismo de Pessoa.Com efeito, o sentido do mistério perpassa nesses poemas, onde é visível, como nos poemas orrtónimos «Silvos ou gnomos tocam?» ou «Passos tardam na relva», em que pequenos seres míticos são pressentidos.
« Caminhos para o oculto»:
Chegamos, neste ponto, ao tratamento daquilo que Quadros designa de caminhos
para o oculto. Segundo ele, Pessoa experimentou ou tentou, melhor dizendo, três caminhos de aproximação do Mistério, tantas vezes pressentido ou entrevisto. Seriam eles o caminho gnósico da percepção e visão supranormal, da imaginação, do sonho, da mediunidade, da reminiscência anamnésica platónica, da permeabilidade ao inconsciente colectivo ou arcaico, ou das iluminações , inspirações e contactos de ordem mística. A segunda via, segundo Quadros, seria ocaminho sófico – reflexão metafísica associada à cultura erudita; depois do clarividente, o pensador, o intelectual, o erudito, o que raciocina exaustivamente. Finalmente, a via ou caminho iniciático, presente em poemas esotéricos conhecidos como Na sombra do Monte Abiegno, Do Vale montanha`,A Múmia, Iniciação, Eros Psique, No túmulo de Christian Rossencreutz. Estes poemas têm sido exaustivamente analisados, quer por Dalila Pereira da Costa, quer por Yvette Centeno, e remeto para tais estudos aprofundados os meus queridos e pacientes ouvintes.
Na sombra do Monte Abiegno
Repousei de meditar.
Vi no alto o alto Castelo
Onde sonhei de chegar.
Mas repousei de pensar
Na sombra do Monte Abiegno.
Quando fora amor ou vida,
Atrás de mim o deixei,
Quando fora desejá-los,
Porque esqueci não lembrei.
À sombra do Monte Abiegno
Repousei porque abdiquei.
Talvez um dia, mais forte
Da força ou da abdicação,
Tentarei o alto caminho
Por onde ao Castelo vão.
Na sombra do Monte Abiegno
Por ora repouso, e não.
Quem pode sentir descanso
Com o Castelo a chamar?
Está no alto, sem caminho
Senão o que há por achar.
Na sombra do Monte Abiegno
Meu sonho é de o encontrar.
Mas por ora estou dormindo,
Porque é sono o não saber.
Olho o Castelo de longe,
Mas não olho o meu querer.
Da sombra do Monte Abiegno
Que me virá desprender?
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por casas, por prados,
Por quinta e por fonte,
Caminhais aliados.
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por penhascos pretos,
Atrás e defronte,
Caminhais secretos.
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por plainos desertos
Sem ter horizontes,
Caminhais libertos.
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por ínvios caminhos,
Por rios sem ponte,
Caminhais sozinhos.
Na sombra do Monte Abiegno: — o Monte Abiegno é a Montanha que une os planos terrestre e celeste, desafio ao homem que aspira pelo Absoluto. A imagem docavaleiro-monge, como a do Castelo, ambas de ressonâncias medievais, é a do cavaleiro solitário que busca «por ínvios caminhos» o seu Graal – a Verdade
Mais importante ainda é o conjunto de poemas A Múmia, também cronologicamente o primeiro destes poemas esotéricos. Segundo Yvette Centeno, assistimos nesta poesia cifrada «a um percurso espiritual, iniciático (em que se confirma a morte da alma) e a uma revelação. O poeta desce progressivamente dentro de si mesmo, separa-se de toda a realidade material e espiritual, fica reduzido à própria espinha, ao osso, à pura essência; e obtém no fim a revelação sobre a qual nada diz...»Tal percurso «é pontuado por uma absorção no Inconsciente, pela constatação da morte de Anima e pela depuração do Eu até à fixação na própria espinha, terminando de chofre com a enigmática substantivação «As espadas». As espadas equivaleria ao fogo dos filósofos, sendo também um atributo dos iniciados templários e rosa-cruzes, o que leva Centeno a interrogar-se: «Que concluir daqui? Que a revelação das espadas equivale à revelação simultânea, à «abertura, aqui» da porta do Entendimento e da beleza? Experiência que coroa a realização do homem, do poeta.»
A experiência alquímica visa, segundo Mirciade Eliade, «transmutar o homem; pela iniciação, o místico mudava de regime ontológico (fazia-se imortal). A transmutação, o opus magnum, que conduzia à pedra filosofal. obtém-se fazendo passar a matéria por 4 graus ou fases, entre as quais a nigredo e putrefactio, ou morte iniciática (....).»
Os poemas mais claramente iniciáticos de Pessoa são os já referidos «Iniciação», «No túmulo de Christian Rossencreutz» e ainda o de certo modo enigmático «Gomes Leal». Detenhamo-nos um pouco mais sobre o primeiro:
Iniciação
Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
......
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.
Vem a noite, que é a morte
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.
Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa.
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.
Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.
Por fim, na funda caverna,
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.
......
A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não estás morto, entre ciprestes.
......
Neófito, não há morte.
Só despindo-se, pela desnudação, o poeta encontra a verdadeira vida/unidade: por isso, «neófito, não há morte». Para o conseguir é preciso, porém atingir o fundo do poço, da caverna onde a verdadeira vida e a verdadeira verdade, passe a redundância, se encontram.
O corpo nada mais é que invólucro pesado e obstáculo de que é necessário despojar-se.
Como escreve Dalila Pereira da Costa:
«. Aqui o neófito renasce, depurado para outra vida, nessa caverna regeneradora, centro das forças do mundo e do eu, da energia primeira: sua matriz. Novo ciclo de existência se lhe abre: a dos deuses, «pois aí vês que são teus iguais». Aqui se termina a transmutação suprema, tal outra operação alquímica, que é a morte. Por esses estados sucessivos se ultrapassou, ou largou, a natureza humana e se adquiriu a natureza celeste, matéria última, incorruptível e eterna.
Iniciação poderá ser visto semelhantemente como uma purificação, numa alquimia do corpo humano. Por essa destruição, combustão de todos os elementos acidentais, exteriores, agarrados ao seu núcleo, central e incorruptível, fazer que este por fim, liberto e único, brilhe na caverna, a última etapa do trabalho interior: como a «matéria-prima». Nesse cadilho alquímico, ela será a obtenção final do diamante incorrupto, ou «Lapis Philosophorum». O ser primordial e eterno, o que um dia caiu do infinito, e que aqui sobre a terra, é o proscrito. Fechando assim agora o círculo, este poema, como «exitus», será o segundo e complementar movimento desse outro (como linha ascensional numa mesma onda), que surgiu na sua juventude, e em semelhante ambiente de mistério iniciático: os Passos da Cruz»
Da iniciação resulta também a desgraça, a tristeza e a solidão, como parece entrever- - se no poema Por que Ó Sagrado (datado de 1932):
Por que, ó Sagrado, sobre a minha vida
Derramaste o teu verbo?
Por que há- de a minha partida
A coroa de espinhos da verdade
Antes eu era sábio sem cuidados,
Ouvia a tarde finda, entrar o gado
E o campo era solene e primitivo
Hoje no meu ser sou o escravo
Só no meu ser tenho de a ter o travo,
Estou exilado aqui e morto vivo.
Maldito o dia em que pedi a ciência!
Mais maldito o que a deu, porque me a deste!
Que é feito dessa minha inconsciência
Que a consciência, como um traje, veste?
Hoje sei quase tudo e fiquei triste...
Sei a verdade, enfim, do Ser que existe,
Prouvera a Deus que eu não soubesse tanto!
O retomar da experiência de êxtase:
Novas experiências místicas vão surgir, no entanto, a partir desse mesmo ano – e o êxtase dos primeiros tempos, de Além - Deus, surge em Magnificat, de Álvaro de Campos:
MAGNIFICAT (7-11-1933)
Quando é que passará esta noite interna, o universo,
E eu, a minha alma, terei o meu dia?
Quando é que despertarei de estar acordado?
Não sei. O sol brilha alto,
Impossível de fitar.
As estrelas pestanejam frio,
Impossíveis de contar.
O coração pulsa alheio,
Impossível de escutar.
Quando é que passará este drama sem teatro,
Ou este teatro sem drama,
E recolherei a casa?
Onde? Como? Quando?
Gato que me fitas com olhos de vida, quem tens lá no fundo?
É esse! É esse!
Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;
E então será dia.
Sorri, dormindo, minha alma!
Sorri, minha alma, será dia!
Trata-se, na opinião de Quadros, de «um cântico de assunção e êxtase», «momento de apaziguamento – consolado, repousado, gratificado. Porque, contemplado em êxtase, Esse lho terá concedido.» .
Confirma-se, assim, a opinião já referida de Dalila Pereira da Costa de que:
«Deus em Pessoa não é um conceito, uma noção teórica nem um ideal abstracto. Sua ideia de deus não é racional. Ele é uma realidade conhecida por experiência directa. Uma realidade eminentemente viva, como o Deus vivo da Bíblia, o mesmo que todos os grandes espirituais conheceram.(...) Não procuremos tão pouco no seu pensamento um Deus de feição moral. O seu deus é o dos contemplativos, conhecido e revelado no amor e na liberdade. A salvação aqui não é dada através dos méritos e das obras próprias, mas pela união sagrada com Deus. É nela que estará o homem justificado.»
Vemo-lo também lendo, em vésperas de Natal de 1934, e ainda com Álvaro de Campos, a 1ª Epístola aos Coríntios:
Ali não havia electricidade.
Por isso foi à luz de uma vela,mortiça
Que li, inserto na cama,
O que estava à mão para ler —
A Bíblia, em português (coisa curiosa), feita para protestantes.
E reli a «Primeira Epístola aos Coríntios».
Em torno de mim o sossego excessivo de noite de província
Fazia um grande barulho ao contrário,
Dava-me uma tendência do choro para a desolação.
A «Primeira Epístola aos Coríntios»...
Relia-a à luz de uma vela subitamente antiquíssima,
E um grande mar de emoção ouvia-se dentro de mim...
Sou nada...
Sou uma ficção...
Que ando eu a querer de mim ou de tudo neste mundo?
«Se eu não tivesse a caridade.»
E a soberana luz manda, e do alto dos séculos,
A grande mensagem com que a alma é livre...
«Se eu não tivesse a caridade..»
Meu Deus, e eu que não tenho a caridade!---
Em Magnificat reencontra-se Campos / Pessoa consigo mesmo, com a Unidade. Tal unidade, conseguida pelo contacto directo com o Absoluto, é também, no entender de Quadros e nosso, prosseguida e conseguida no poema «A melhor maneira de viajar é sentir».
Nele se afirma:
Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas
Quantas mais personalidades eu tiver
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir como todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a essência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,
Porque, seja ele quem for, com certeza que é tudo,
E fora d’ Ele há só Ele, e tudo para Ele é pouco...
E mais adiante:
Cada alma é uma escada para Deus
Cada alma é um corredor-Universo para Deus,
Cada alma é um rio correndo para as margens do Externo
Para Deus e em Deus com um sussurro soturno.
— E, se assim é, o convite:— Sursum corda!
Sursum corda! Erguei as almas!
Todo o Mistério é Espirito (...)
O Poeta, cuja alma é corredor - Universo para Deus explode em cânticos de louvor –
«reparo para ti e sou todo um hino!»
e pede:
Ocupa de toda a tua força e de todo o teu poder quente
Meu coração a ti aberto!
Como uma espada trespassando meu ser erguido e extático,
Intersecciona com meu sangue, com a minha pele e os meus nervos,
Teu movimento contínuo, contíguo a ti próprio sempre.
É que, afirma:
Sou uma chama ascendendo, mas ascendo para baixo e para cima,
Ascendo para todos os lados e ao mesmo tempo, sou um globo
de chamas explosivas buscando Deus e queimando
A crosta dos meus sentidos, o número da minha lógica
A minha inteligência limitadora e gelada.
E o poema prossegue: — Oferece-se como dinamismo poderoso, tendo integrado em si «todos os movimentos que compõem o universo, a fúria minuciosa e dos átomos, a fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos, a espuma furiosa de todos os rios» e dizendo:
«Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio
De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh’alma»
O poema termina, com o poeta dirigindo-se a essa força cósmica (Deus?) dizendo:
«Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode (...)
Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida, (...)
Sobrevive-me, em minha vida, em todas as direcções!»
As questões que ficam:
E aqui está, como neste sensacionismo assumido se retoma e se esclarece, ganhando
nova luz, o «Já viram Deus as minhas sensações». de Passos da Cruz.
Concluiríamos assim que também (ou sobretudo?) a sensação é força propulsora da caminhada do cavaleiro-monge em direcção ao Monte Abiegno ou a Deus, a Grande Ogiva?
Que Caeiro – o sensacionista dos sensacionistas, o porventura talvez mais whitmaniano (indo para além do próprio Whitman, de resto) – seria também uma via para Deus, para o Absoluto, para a fundamental unidade?
São perguntas que ficam. Eu nada sei – ou quase nada. Apenas me interrogo – e interrogo; como Pessoa me sinto – ou gostaria de me sentir e ser – indisciplinadora de almas, levando-as a interrogarem-se.
Em todo o caso, e como esboço de uma conclusão, sempre provisória, reforço, parece-- me poder concordar com a opinião expressa por Murillo Nunes de Azevedo, um teósofo brasileiro, em texto intitulado: Fernando Pessoa Teósofo:
«Fernando Pessoa é, por excelência, o poeta do transcendentalismo. Sua poesia pode ser igualada à de Wiliam Blake. É densa, atingindo zonas do inconsciente, só reveladas aos místicos, aos profetas »
O mesmo autor aproxima a criação dos heterónimos da teosofia:
«Ao criar, do modo como o definiu, quase em êxtase, os heterónimos, o poeta mergulhava cada vez mais nas raízes do próprio Ser. Recebia então a comunicação directa das camadas profundas do inconsciente colectivo comum a todos os homens (...)A intuição é a visão directa da realidade, sem intermediários.»
Talvez «isto» que agora vos li seja tão só um muito pequeno e tímido começo para uma reflexão mais pessoal e mais profunda. Minha e de todos vós. Com a certeza de que são bastante ínvios os caminhos para captar o Pessoa detrás de todos os fingimentos e de todos os Pessoa (s).
Peço desculpa pela extensão do meu texto – era, porém, difícil fazê-lo mais breve.
É que só é capaz de ser sintético quem domina muitíssimo bem e vê claramente um problema. O que não é, decididamente, e por enquanto, o meu caso.
Para além de tudo o mais, dizia Camões, dirigindo-se à Canção: «E se acaso / te culparem de larga e de pesada, «Não pode ser – lhe dize - limitada / a água do mar em tão pequeno vaso »...
Termino como comecei, com referência ao homem de todos os desassossegos, Bernardo Soares, relembrando as suas palavras desconsoladas:
«Pertenço a uma geração que herdou a descrença na fé cristã e que criou em si uma descrença em todas as outras fés. Os nossos pais tinham ainda o impulso credor, que transferiam do cristianismo para outras formas de ilusão. Uns eram entusiastas da igualdade social, outros eram enamorados só da beleza, outros tinham a fé na ciência e nos seus proveitos, e havia outros que, mais cristãos ainda iam buscar a Orientes e Ocidentes outras formas religiosas, com que entretivessem a consciência, sem elas oca, de meramente viver.
Tudo isso nós perdemos, de todas essas consolações nascemos órfãos. »
Leiria, Fevereiro e Março de 2001
Amélia Pinto Pai
Comunicação às Jornadas Culturais / Literárias 2000 «Imagens de Deus na Literatura Portuguesa nos séc.XIX e XX» – Auditório da Escola Superior de Tecnologia e Gestão – Leiria, 15 e 16 de Março de 2001
por Amélia Pinto Pais,
da Escola Secundária de Francisco Rodrigues Lobo, de Leiria
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